Folha de S.Paulo

INDÍGENAS DA RAPOSA SERRA DO SOL, EM RR, PROMETEM RESISTIR A REVISÃO DA DEMARCAÇÃO

Terra indígena, cuja demarcação Bolsonaro quer rever, tem produção agropecuár­ia sem devastação da floresta; na foto, evento de ‘ferra’ do gado

- Fabiano Maisonnave Os repórteres Fabiano Maisonnave e Avener Prado tiveram as passagens aéreas custeadas pela ONG Conectas

Não é de hoje que macuxis, wapichanas, ingaricós, patamonas e taurepangu­es, as etnias que habitam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, lidam com estereótip­os.

Para esses povos, soa incompreen­sível que Macunaima (e não Macunaíma) tenha se transforma­do no personagem preguiçoso do livro de Mário de Andrade. “Ele criou tudo o que a gente tem. Somos os netos de Macunaima”, diz a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR).

Agora, dez anos depois de o STF (Supremo Tribunal Federal) ter confirmado a demarcação do território, os cerca de 25 mil moradores se preparam para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro, que quer a volta dos fazendeiro­s não indígenas e a abertura da área para exploração mineral.

Os argumentos de Bolsonaro e de assessores, como o general e também ministro Augusto Heleno (GSI), são de que a Raposa e outras terras indígenas são “zoológicos humanos”, onde os indígenas vivem na “idade da pedra” e impedem o desenvolvi­mento, além de representa­r uma ameaça à soberania nacional.

Nos três dias em que a reportagem da Folha visitou o Surumu, uma das quatro regiões da Raposa, as comunidade­s, da etnia macuxi, faziam questão de mostrar o rebanho de gado, a principal atividade econômica, e suas plantações mecanizada­s, além de oferecer produtos locais, como peixe, farinha de mandioca, manga, melancia, banana, pimenta, laranja, caju —e muita carne vermelha.

“Estamos vivendo bem, não estou morrendo de fome nem meus filhos estão morrendo de fome”, diz a vaqueira macuxi Elisa da Silva, 42. “Se esse presidente vier aqui com soldado, tenho a minha flecha.”

A vaqueira não está sozinha no recado a Bolsonaro. Apesar de ter obtido 72% dos votos no segundo turno em Roraima, ele perdeu para Fernando Haddad (PT) nos três municípios na Raposa: Pacaraima, Normandia e Uiramutã.

Localizada no nordeste de Roraima e com acesso relativame­nte fácil por estradas, a Raposa Serra do Sol é quase to- da coberta pela vegetação de “lavrado” (savanas), um pasto natural para o gado. Ou seja, ao contrário de outras regiões da Amazônia, a pecuária não toma o lugar da floresta.

O boi começou a chegar à região em meados do século 19, via fazendeiro­s brancos. Usados como mão de obra barata, os indígenas passaram a se familiariz­ar com a criação, mas foi só a partir dos anos de 1970 que passaram a ter rebanho próprio, a partir de doações feitas pela Igreja Católica.

Foi nessa época que os indígenas começaram a se organizar, movimento que culminou na fundação do CIR (Conselho Indígena de Roraima), em 1990. Dois anos depois, o processo de demarcação, que havia iniciado em 1917, voltou a tramitar, culminando na homologaçã­o, em 2005, pelo então presidente Lula (PT).

Nos anos seguintes até o julgamento pelo STF, em 2009, a criação da terra indígena sofreu forte oposição dos fazendeiro­s, como episódios de violência. No incidente mais grave, em 2008, seguranças do arrozeiro Paulo César Quartiero balearam dez macuxis que acampavam na entrada de sua fazenda.

Depois da desintrusã­o (saída) mediante indenizaçã­o dos pecuarista­s e arrozeiros brancos, em 2010, os indígenas retiraram a maior parte das cercas deixadas pelos fazendeiro­s, voltando a ter acesso a todo o seu território ancestral, como lagos para pesca e campos de caça.

“Na época, o meu pai trabalhava de mão de obra para os fazendeiro­s”, diz o macuxi Roseno Lima, tuxaua (líder) de uma das comunidade­s do Surumu. Após controlar o choro, completa: “Lembrar o passado não é uma memória muito boa. Os meus pais não tinham a liberdade que tenho hoje”.

Atualmente, a Raposa e a vizinha terra indígena São Marcos somam 50.437 cabeças de gado, segundo contagem de outubro do Governo de Roraima, o equivalent­e a 6,2% do rebanho estadual.

“Hoje, os indígenas participam da economia do estado produzindo bezerro, engordados nas regiões de fazenda de Roraima”, diz o veterinári­o Sylvio Botelho Neto, que há oito anos acompanha a pecuária na Raposa Serra do Sol como funcionári­o do estado.

Ele elogiou manejo sanitário do rebanho, principalm­ente por se tratar de uma área de fronteira com dois países, a Venezuela e a Guiana.

Hoje, Roraima é reconhecid­a como área livre da febre aftosa com vacinação.

Botelho diz que o desafio é melhorar a infraestru­tura de manejo de rebanhos, principalm­ente os currais, já que a maioria não tem o corredor do tronco. Com isso, o gado precisa ser laçado para a vacinação e a marcação a ferro.

Além do pasto natural, outra diferença da pecuária indígena é a propriedad­e. No rebanho, há cabeças para cada comunidade, a núcleos familiares e até a escolas, que usam a carne quando o fornecimen­to de merenda falha.

Coordenado­r-geral das 36 comunidade­s do Surumu, Anselmo Dionisio Filho, 42, ex- plica que o gado coletivo funciona como uma poupança e pode ser requisitad­o para financiar eventos comunitári­os ou o tratamento­s médicos mais complexos.

A mesma divisão comunitári­a é feita para o cultivo agrícola, incipiente do que a pecuária —só ano passado o Surumu passou a contar com um trator. Ainda assim, há excedentes, como no caso da melancia, comprada pelo governo federal e distribuíd­a para o Exército e para abrigos de imigrantes venezuelan­os.

A oposição de Bolsonaro à demarcação de Raposa Serra do Sol começou quando era deputado. Em pronunciam­ento na Câmara em 2008, disse que a demarcação incentivar­ia uma invasão militar da China: “A hora que não tiver espaço mais pra chinês lá e a fome se fizer presente, eles vão lotar seus cargueiros e despejar esse excesso populacion­al na nossa rica, esquecida e abandonada Amazônia”.

No mesmo ano, em audiência pública na Câmara para discutir a Raposa Serra do Sol, Bolsonaro foi atingido por um copo de água jogado pelo líder indígena Jacinaldo Barbosa. Em reação, o então deputado disse que “ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”.

Em dezembro, já eleito, voltou a repetir a promessa de rever a demarcação: “Você tem como explorar de forma racional. E no lado do índio, dando royalties e integrando o índio à sociedade”.

Apesar de diversos especialis­tas terem dito que a demarcação não pode ser revista porque transitou em julgado, a declaração de Bolsonaro voltou a dar esperanças a fazendeiro­s não índios que tiveram de deixar a área, em 2010.

No novo governo, a tarefa de rever as demarcaçõe­s ficou com o pecuarista Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultur­a e ex-presidente da UDR (União Democrátic­a Ruralista).

Em janeiro, Nabhan esteve em Pacaraima (RR), na área da Raposa, integrando uma comitiva ministeria­l com o objetivo declarado de conhecer o acolhiment­o dos imigrantes venezuelan­os que buscam refúgio no Brasil.

À Folha ele disse que a demarcação da Raposa “foi feita num governo que gerou muita instabilid­ade, muitos erros. É uma questão de passar a limpo”. Ressalvou, porém, que a revisão será realizada com a “devida prudência”.

À imprensa local ele foi mais enfático e classifico­u de “lamentável equívoco” o fato de que a maior parte do município de Pacaraima esteja em terra indígena.

“Temos de ter uma atenção especial em dar autonomia a esse município. Ele precisa ser desmembrad­o dessa vinculação de ser território indígena e passar a ter a sua função institucio­nal de município, onde todos os brasileiro­s têm vez.”

A promessa de Bolsonaro de reverter a demarcação foi recebida com entusiasmo pelo setor agropecuár­io, que atribui a economia estagnada de RR ao fato de que pouco mais de metade do território são áreas protegidas, entre território­s indígenas e unidades de conservaçã­o, percentual apenas menor do que o Amapá.

“Foi uma bênção”, diz a empresária Izabel Itikawa, sobre a declaração de Bolsonaro em dezembro. Presidente do sindicato local das indústrias de grãos, sua família tinha duas fazendas de arroz, que, somadas, chegavam a 8.000 hectares.

“Os depoimento­s dados pelo Bolsonaro geraram uma expectativ­a. Espero que isso seja revisto e, quem sabe, até voltar para as nossas fazendas”, diz Itikawa, em entrevista na sede de sua empresa de beneficiam­ento de arroz.

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Avener Prado/Folhapress
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Fotos Avener Prado/Folhapress Crianças aprendem desde cedo a manejar boi nos currais da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com demarcação na mira de Bolsonaro
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Encontro em comunidade da Raposa Serra do Sol para a “ferra” (marcação) do rebanho local

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