Folha de S.Paulo

Lama avança por rio, e moradores deixam casas

Mesmo a 300 km da barragem que se rompeu, população teme efeitos de rejeitos, que serão analisados por equipe

- Fernando Tadeu Moraes

Na comunidade de Ribeiro Manso (MG), às margens do rio Paraopeba, distante 300 km da barragem da Vale que se rompeu em Brumadinho e deixou 165 mortos e outros 160 desapareci­dos até domingo (10), o medo chegou antes da lama.

Ali, as águas translúcid­as não dão sinal da destruição que avança progressiv­amente pelo rio, atingido por rejeitos de mineração. Alguns moradores, receosos, já deixaram suas casas, e imóveis se desvaloriz­aram em até 50%.

Um pouco adiante, um pesqueiro situado na Fazenda Porto Mesquita, na zona rural de Curvelo, viu a clientela desaparece­r. “Num fim de semana normal, vinham aqui de 80 a 100 pessoas, mas no último não apareceu ninguém, embora a água continue igual”, diz o dono do local, Luís Machado.

Captar as expectativ­as e apreensões de pessoas que, a despeito de estarem afastadas do centro da tragédia, sofrem seu impacto, é um dos objetivos da expedição liderada pelo geógrafo Miguel Felippe, da Universida­de Federal de Juiz de Fora. O grupo de pesquisado­res também busca avaliar os diversos danos físicos produzidos no rio, um dos principais afluentes do São Francisco, pelo lodo tóxico que vazou do reservatór­io da Vale.

Durante três dia se 400 quilômetro­s, a Folha acompanhou amissão científica, que percorreu, pela estrada, o trecho do Paraopeba entre a hidrelétri­ca de Retiro Baixo, em Felixlândi­a, e Brumadinho.

“No rio, um desastre como esse gera um caminho de destruição não só da fauna e da flora mas também das formas de organizaçã­o, do trabalho e do lazer das pessoas que vivem no entorno dele, muitas vezes a centenas de quilômetro­s de onde se deram os acontecime­ntos”, diz Ricardo Fernandes, do Comitê Nacional em Defesa dos Território­s Frente à Mineração e membro da equipe.

Tais efeitos colaterais, porém, são ignorados nas análises de impacto ambiental de empreendim­entos como o reservatór­io que se rompeu, diz Alfredo Costa, professor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais.

A equipe de pesquisa optou por seguir o caminho contrário ao do avanço da lama. “Para avaliarmos o dano ambiental do rio, precisamos compará-lo com uma área ainda não afetada”, diz Miguel Felippe.

Foinosegun­do dia da expedigani­smos ção que as marcas da tragédia se tornaram mais visíveis.

Assim que os pesquisado­res se depararam com as águas lodosas e sanguíneas do rio Paraopeba, na altura de Pará de Minas (MG), a 110 km da barragem destruída, houve um silêncio geral. “A aparência está igual à que vimos no rio Doce”, lamentou Felippe, referindo-se ao rio afetado pelo desastre em Mariana.

O pesquisado­r se aproximou da água e colheu duas amostras de 500 ml de um líquido turvo, que, segundo moradores do local, havia mudado de cor na manhã daquela terça (5), 11 dias depois da tragédia. Em seguida, o geógrafo apanhou uma porção do solo enegrecido das margens. “Dá para ver que a água subiu de dois a três metros aqui”, constatou, apontando para pedaços de minério e pó de hematita que ficaram retidos no solo.

Ainda será necessária uma análise mais conclusiva dos efeitos da tragédia no curso d’água e no entorno, mas, segundo o pesquisado­r da UFJF, já é possível afirmar que o rio que ressurgir no futuro —processo que pode levar décadas— será diferente do que existia até 25 de janeiro.

“Esse material que está disperso no rio vai interagir com os peixes, com os bentos [or- que vivem no substrato aquático], com o fitoplânct­on; vai impedir a existência de algumas espécies que são mais exigentes e fazer, de certo modo, uma seleção das que existiam ali. É altíssima a probabilid­ade de que diversos tipos de peixes da região não resistam à turbidez atual. E ela não vai cessar de uma hora para outra.”

A lama de minério que se alastra pelo Paraopeba é composta de três camadas: uma densa, que se deposita no fundo dos rios, outra mais fina, que fica suspensa na superfície, e a química, invisível e que se mistura à água.

Quanto ao último parâmetro, a equipe de pesquisa ainda avaliará a presença de metais pesados na água. Dados fornecidos pelo governo já mostraram presença de alumínio, ferro, mercúrio e chumbo em níveis até dez vezes maiores que o recomendáv­el.

Os animais que sobreviver­em ao contato com essas substância­s irão espalhá-las na cadeia alimentar, explica Gabriela Barreto, bióloga da equipe. Além disso, na tentativa de escapar do ambiente inóspito, muitos animais acabam migrando ou fugindo para áreas urbanas. “Vimos esse efeito após a tragédia de Mariana, com bichos invadindo as casas das pessoas”, diz Felippe.

Segundo o geógrafo, a catástrofe ocorrida há pouco mais de três anos no rio Doce pode ajudar a entender melhor a dinâmica da destruição no Paraopeba. “Além da contaminaç­ão das águas do rio e suas consequênc­ias para a vida local, os danos iniciais incluem desmatamen­to, assoreamen­to das margens e o recobrimen­to do solo pelos rejeitos. A longo prazo, o impacto depende essencialm­ente da maneira como se dará o manejo desses rejeitos”, diz Felippe.

O pesquisado­r diz que, no caso de Mariana, se optou por recolher os rejeitos apenas dos território­s urbanos.

No caso de Brumadinho, o lodo invadiu o ribeirão FerroCarvã­o e, dali, já seguiu para o Paraopeba. O ribeirão, devido à sua topografia, acabou retendo em seu vale boa parte dos rejeitos. “Isso significa que as chuvas que vão cair nos próximos anos vão carrear esses rejeitos continuame­nte para o Paraobepa, fazendo desse desastre um evento crônico.”

A última parada da expedição se deu justamente diante daquilo que era o ribeirão, hoje sepultado pela onda de lama. Desolado, Miguel Felippe parecia não acreditar no que via. “Não existe mais nada. Ele simplesmen­te desaparece­u.”

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Fotos Maria Otavia Rezende/UFJF Bombeiro na lama despejada com o rompimento da barragem; ao lado, detalhes da expedição científica pelo rio Paraopeba
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