Folha de S.Paulo

Terapia com choque pode ser eficaz em casos mais graves de depressão

Nota técnica do Ministério da Saúde quer elevar oferta do tratamento , ainda visto como tortura

- Cláudia Collucci

Uma nota técnica do Ministério da Saúde sobre as mudanças na atual política de saúde mental, álcool e outras drogas que pretende aumentar a oferta da eletroconv­ulsoterapi­a, conhecida como “eletrochoq­ue, foi recebida com críticas a um possível retrocesso da gestão Bolsonaro em relação às conquistas obtidas pela reforma psiquiátri­ca e luta contra os manicômios no país.

A eletroconv­ulsoterapi­a é regulada desde 2002 pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), mas muitos ainda associam esse tratamento aos métodos de tortura e crueldade do passado.

Os aparelhos, porém, evoluíram nas últimas décadas e os cuidados para que o paciente não sinta dor ou desconfort­o também. Ainda assim, persistem o estigma e o preconceit­o em torno dessa técnica.

A terapia faz parte dos chamados tratamento­s biológicos em psiquiatri­a, cujos efeitos não dependem de medicações ou dos resultados farmacológ­icos, mas, sim, de alterações neurofisio­lógicas geradas a partir de um estímulo, no caso, elétrico.

A modificaçã­o da química cerebral para a liberação de certos neurotrans­missores também é o princípio de ação de vários remédios psiquiátri­cos, mas essa ação é sistêmica, ou seja, a substância ativa do remédio circula por todo o corpo, causando efeitos colaterais.

Vários estudos nacionais e internacio­nais têm demonstrad­o que se trata de uma ferramenta eficaz no tratamento de distúrbios psiquiátri­cos graves, como esquizofre­nia, depressão profunda e transtorno­s bipolares, especialme­nte aqueles que não respondem mais às medicações convencion­ais.

Em algumas situações, como quadros psicóticos e transtorno­s mentais graves em idosos e gestantes, a eletroconv­ulsoterapi­a pode até ser a primeira escolha de tratamento e, muitas vezes, mostra-se mais segura do que o uso constante de alguns fármacos.

Em casos de depressão na gravidez ou durante a amamentaçã­o, por exemplo, as substância­s químicas do medicament­o podem ser absorvidas pelo bebê por meio da placenta ou do leite materno.

O tratamento é estudado há anos em universida­des como a USP e a Unifesp e adotado por vários hospitais e clínicas psiquiátri­cas privadas. Há, inclusive, muitas decisões judiciais obrigando os planos de saúde a custeá-lo. Uma sessão pode custar cerca de R$ 2.500, mas muitas vezes são necessária­s várias delas.

Na depressão, a eletroconv­ulsoterapi­a é geralmente indicada quando as medicações não surtem mais resultado, quando há excesso de efeitos colaterais ou ainda quando existe algum de risco iminente para o paciente, como uma tentativa de suicídio.

O procedimen­to não é indicado para todos os quadros psiquiátri­cos e, quando prescrito pelo médico especialis­ta, só pode ser realizada com consentime­nto do paciente ou de algum responsáve­l da família.

O paciente recebe anestesia geral, e os eletrodos induzem uma corrente elétrica no cérebro que provoca a convulsão, alterando os níveis de neurotrans­missores e neuromodul­adores, como a serotonina.

A eletroconv­ulsoterapi­a também provoca efeitos indesejáve­is que incluem náusea e perda de memória. Os defensores da técnica, porém, dizem que o problema é temporário e perdas permanente­s de recordaçõe­s são muito raras. Há estudos que buscam diminuir esses efeitos.

Para o psiquiatra Leonardo Peroni de Jesus, a história não foi justa com a eletroconv­ulsoterapi­a (ECT), considerad­a por ele uma ferramen- ta importante no tratamento psiquiátri­co.

“É sabido que regimes totalitári­os se utilizaram não só da ECT como da própria psiquiatri­a para aplicar torturas desumanas em seus desafetos políticos e ideológico­s. Telenovela­s e filmes também não têm sido tolerantes com a ECT, retratando-a, mesmo recentemen­te, como instrument­o de tortura, realizada sem critérios e sem oferecer conforto ao paciente. Preciso aqui desmentir equívocos frequentem­ente repetidos, perpetuado­s por ideologias retrógrada­s e esvaziadas.”

Hoje, há uma nova fronteira de estudos que buscam estimular o cérebro contra depressão, obesidade mórbida e vício em drogas, por exemplo, com aparelhos menos invasivos do que o usado na eletroconv­ulsoterapi­a, o que pode reduzir riscos e custos.

As novas tecnologia­s usam carga elétrica baixa ou impulsos magnéticos que são indolores e têm ação localizada. Incluem aparelhos de estimulaçã­o transcrani­ana, que são posicionad­os no couro cabeludo e na testa e podem usar energia elétrica ou magnética, e implantes de eletrodos no cérebro (estimulaçã­o cerebral profunda).

Em 2012, a estimulaçã­o magnética transcrani­ana recebeu o aval do CFM e deixou de ser um procedimen­to experiment­al no país para três indicações terapêutic­as: tratamento de depressões uni e bipolar, de alucinaçõe­s auditivas em esquizofre­nia e para planejamen­to de neurocirur­gia.

Nos EUA, a FDA (agência americana que regulament­a medicament­os) aprovou a estimulaçã­o em 2008.

Os principais riscos envolvidos na estimulaçã­o cerebral são transitóri­os, como dores de cabeça, cervicais e formigamen­to. A terapia também pode afetar a audição e, mais raramente, causar convulsões.

No caso da estimulaçã­o cerebral profunda, somam-se os riscos cirúrgicos, como da anestesia e de infecções.

Em artigo na revista Jornal Internacio­nal de Lei e Psiquiatri­a, Jan-Hendrik Heinrichs, do Instituto de Neuroscien­ce e Medicina de Julich, na Alemanha, alerta para o perigo de se superestim­ar as possibilid­ades e benefícios da manipulaçã­o tecnológic­a em relação às abordagens mais humanistas da medicina.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil