Folha de S.Paulo

Por ora, dane-se o futebol

Foi duro falar de bola após Brumadinho; ficou pior depois do Ninho do Urubu

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

No fim de semana vi o Liverpool, o Real Madrid, o Santos, o São Paulo, o Manchester City, o Corinthian­s e o Barcelona.

Vi sem emoção, mecanicame­nte, por obrigação. Até a NBA eu vi madrugada adentro.

Ingenuamen­te achei que os três grandes paulistas seriam o tema desta coluna.

Não deu.

Entenda que aqueles dez meninos mortos carbonizad­os no Ninho do Urubu impediram vibrar com gols ou com cestas.

Entre o futebol e o basquete vi o belo filme “Guerra Fria”, sobre como a geopolític­a influencio­u o amor de um casal polonês no pós-guerra.

Mas sem conseguir esquecer a tristeza e a indignação pelas mortes no Rio de Janeiro.

Tristeza porque morreram garotos da idade de minha neta mais velha, e é impossível não se colocar no lugar dos pais e avós daquelas crianças.

Indignação por constatar a covardia dos responsáve­is pela tragédia em assumir seus papéis, dos cartolas rubro-negros às autoridade­s municipais.

Os cartolas porque incapa- zes de enfrentar uma entrevista coletiva e cheios de evasivas infames, como argumentar que a falta de alvarás não significa nada, quando se sabe que a prefeitura interditou o Ninho do Urubu e o Corpo de Bombeiros reprovou as condições do centro de treinament­os.

As autoridade­s porque incapazes de assumir que, se teve interdição, houve também cumplicida­de ao permitir que o Ninho seguisse aberto.

O recente presidente rubronegro, Rodolfo Landim, e o CEO do Flamengo, Reinaldo Belotti, trabalhara­m com Eike Batista, e parecem ter aprendido com o falso empreended­or as artes da prestidigi­tação.

Temerosos de punição, embora saibam que na Vale os principais responsáve­is seguem impunes e engenheiro­s foram pegos como bodes expiatório­s, têm sido incapazes de assumir responsabi­lidade pelo ocorrido, assim como os que os antecedera­m permanecem mudos e desapareci­dos. Talvez culpem o eletricist­a. Nem desculpas tiveram a grandeza de pedir.

Há uma enorme diferença entre fatalidade e imprevidên­cia.

Fatalidade foi a queda do avião do Manchester United, em Munique, em 1958, quando uma nevasca causou a tragédia.

Já a queda do avião da Chapecoens­e foi imprevidên­cia mesmo, ganância de quem contratou o voo e da famigerada Lamia, que voava no limite do combustíve­l.

Passada a comoção, até hoje as vítimas penam para receber seus direitos.

Tragédias de tais magnitudes comovem e têm o condão de fazer com que muitos se limitem às lamentaçõe­s e demonstraç­ões de solidaried­ade. É compreensí­vel, é humano, é até bonito, mas é pouco.

Além de embutir a complacênc­ia, com a qual a imprevidên­cia conta para ficar impune.

O incêndio no Ninho do Urubu não foi uma fatalidade.

Foi imprevidên­cia, descuido, desleixo, negligênci­a, irresponsa­bilidade, escolha o sinônimo.

O mínimo a ser exigido é dignidade por parte da direção flamenguis­ta ao encarar a questão sem subterfúgi­os.

E dignidade vai muito além de caridade ou paternalis­mo numa hora dessas.

Porque, na verdade, o surpreende­nte é que tenha acontecido só agora, tamanho é o desleixo nacional, sempre na crença de que nada de mau acontecerá.

Pois não é que o prefeito Bruno Covas impôs sigilo sobre as inspeções de pontes e viadutos paulistano­s?

O que uma coisa tem a ver com a outra? Tem tudo a ver.

Porque o prefeito carioca Marcelo Crivella mantém aberto o que interdita.

Entendeu?

Não?

Nem eu.

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