Folha de S.Paulo

O diabo na rua

Com volume de luxo de ‘Grande Sertão: Veredas’, a obra de Guimarães Rosa ganha novas edições, e herdeiro diz que publicação dos inéditos está próxima

- Maurício Meireles

Ninguém poderia esperar, mas aquele homem que falava um mineirês manso e desfilava por aí com sua gravatinha borboleta deu vários socos de ódio na mesa.

O ano era 1967 e Guimarães Rosa, membro do comitê que deveria avaliar uma proposta de unificação das ortografia­s brasileira e lusitana, estava uma arara. Era contra. Achava uma questão moral.

Quando reclamaram que assim ele desrespeit­ava os ilustres linguistas que inventaram aquela ideia, respondeu: “Não se pode abrir os braços sem acotovelar alguém”. Para ele, a riqueza do português e suas variantes era um patrimônio inestimáve­l.

O acordo ortográfic­o enfim veio, em 1990, mas Rosa deixou um testemunho desse amor em livros nos quais reinventa a língua. Eles começam a sair agora por novas editoras, depois de deixarem a Nova Fronteira, ano passado.

Sua obra-prima, “Grande Sertão: Veredas”, chega no fim do mês às livrarias, pela Companhia das Letras, em duas edições —uma comum e outra de luxo. Esta, limitada, terá 63 exemplares numerados.

Os exemplares especiais terão capas feitas por bordadeira­s de São Paulo e Minas Gerais, costuradas uma a uma e inspiradas em um manto do Bispo do Rosário. O desenho, criação de Alceu Chiesorin Nunes, traz os nomes de vários personagen­s do romance.

Em março, a Global começa a lançar suas edições, com o volume de contos “Sagarana”. Neste ano, saem ainda “Primeiras Estórias” e “Manuelzão e Miguilim”, entre outros.

O motivo de as obras ficarem em editoras diferentes é uma divisão entre os herdeiros. Enquanto os direitos do principal livro de Rosa são dos herdeiros de Aracy Moebius de Carvalho, sua segunda mulher, as demais são compartilh­adas com as filhas de seu primeiro casamento.

O que fica em suspenso é a situação dos inéditos do autor. O inventário de Rosa, morto em 1967, está aberto e corre em segredo de justiça —os herdeiros do primeiro e do segundo casamento não chegavam a um acordo sobre a partilha dos direitos.

A Nova Fronteira vinha conseguind­o publicar alguns, como textos da juventude e cartas com tradutores —mas, com o fim do contrato, devem ficar disponívei­s só em sebos. As filhas do primeiro casamento se opunham, contudo, à publicação dos chamados “Diários de Hamburgo”, do período em que Rosa foi cônsul, entre 1932 e 1942, na cidade alemã e ajudou judeus a escaparem do nazismo.

Depois de décadas de polêmicas envolvendo os tais diários e outras obras não publicadas, o advogado Eduardo Tess de Carvalho Filho, neto de Aracy, diz que os herdeiros estão finalmente perto de um acordo sobre o tema.

“As conversas estão andando, acho que vamos chegar a bons termos, estão todos mais acessíveis”, diz ele, sem dar detalhes, mas acrescenta­ndo que a ideia é chegar a uma solução ainda neste semestre. “Os ‘Diários de Hamburgo’ fazem parte dessa negociação. Sempre fui favorável a que fossem publicados. Toda forma de entender o processo criativo do Joãozito é importante.”

Uma vez que haja uma solução sobre o assunto, uma nova rodada de negociaçõe­s com editoras pode ser feita.

“Imagino que, depois do nosso acordo, possa haver novas negociaçõe­s. As duas editoras seriam as primeiras a ser consultada­s, é claro. Mas digo sem nenhum compromiss­o, é um mero raciocínio, isso ainda não está no meu radar.”

“Grande Sertão: Veredas” é, portanto, o primeiro de uma leva que pode incluir mais ou menos livros, dependendo do sucesso dessas conversas.

É normal que a obra intimide leitores menos assíduos —nela, Rosa inventou um idioma só seu, com uma mistura de neologismo­s, arcaísmos e influência­s de outras línguas, além de uma sintaxe própria. Mas ela é, sim, uma boa porta de entrada para a prosa do autor.

“É como um mato cerrado, cheio de espinhos, com tudo quanto é cipó, mas também cheio de flores”, diz Érico Melo, que estudou a obra do autor num mestrado e também num doutorado na USP e cuidou do estabeleci­mento do texto da nova edição.

Rosa, o maior prosador brasileiro do século 20 —curiosamen­te, nasceu no mesmo ano da morte de Machado de Assis, em 1908—, estava atento à musicalida­de da fala mineira. Por isso, quem sentir dificuldad­e pode no começo apelar para a leitura em voz alta.

Profundame­nte místico, Rosa trata de temas como o sagrado, a guerra, a origem do mal e a natureza do amor. O cenário sertanejo é um espaço onde se desenrolar­iam dramas universais do homem —como diz o protagonis­ta, o sertão está em toda parte.

Conhecer a saga de Riobaldo pelo sertão de Minas Gerais é como passar por uma nova alfabetiza­ção. No livro, o jagunço conta sua vida, as lutas sangrentas em que se meteu, o amor por Diadorim, seu companheir­o de bando, e a busca por vingança que o leva a fazer um pacto fáustico com o diabo —quer nos convencer, e se convencer, de que o Cramulhão não existe.

Existindo ou não, para citar Riobaldo, as novas edições colocam o diabo outra vez na rua, no meio do redemoinho.

Grande Sertão: Veredas

Autor: Guimarães Rosa. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 89,90 e R$ 1.190, as edições comercial e de luxo, respectiva­mente (552 págs.)

Sagarana

Autor: Guimarães Rosa. Editora: Global. Quanto: R$ 49 (352 págs.)

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Divulgação Bordado feito para a edição de luxo de ‘Grande Sertão: Veredas’, lançada pela Companhia das Letras

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