Com história real, longa violento de Fatih Akin testa estômagos em Berlim
Inspirado em assassino de mulheres dos anos 1970, filme mostra braços e pescoços serrados
Em um filme, mulheres são seguidamente espancadas, torturadas, estupradas e esquartejadas. No outro, uma moça desafia centenárias tradições machistas de seu país em luta pela integridade.
Mais opostos impossível. “The Golden Glove”, do alemão Fatih Akin, e “God Exists, Her Name Is Petrunija”, da macedônia Teona Strugar Mitevska, atiçaram os movimentos #MeToo e Time’s Up no Festival de Berlim. Já são dois dos títulos mais comentados da competição.
A produção de Akin segue a mesma senda de “A Casa que Jack Construiu”, de Lars von Trier. No centro da trama há um serial killer patético que tem predileção por vítimas do sexo feminino.
Mas enquanto o dinamarquês preferia testar o estômago do público despejando cenas atrozes em um grande tratado sobre o mal, seu colega alemão quer induzir o enjoo por vias menos intelectuais.
Pois em “The Golden Glove” transbordam imagens de asco —do apartamento fétido em que o assassino Fritz Honka (Jonas Dassler) mutila prostituas incautas ao bar encardido em que abate suas presas e que dá título ao filme.
Os corpos que desfilam no filme são quase sempre marcados por dentes podres, pele flácida e dedos engordurados. Mesmo as cenas de violência —e são várias—querem evocar mais nojo do que pavor.
A história é inspirada no caso real de um criminoso da zona do baixo meretrício da Hamburgo nos anos 1970 que costumava manter as partes mutiladas de suas vítimas no sótão de casa. Ele encharcava o apartamento com perfume para que os moradores do prédio não sentissem o cheiro podre.
Na primeira sessão à imprensa, o filme foi recebido com gemidos pelo público, em especial nos vários momentos em que Honka aparece serrando braços e pescoços das prostitutas.
Akin, claro, não passou imune a críticas quanto ao excesso de cenas em que mulheres são agredidas. “Quando se faz um filme sobre violência sexual, você tem de mostrá-las”, disse, em conversa com jornalistas. “Apoio o #MeToo, mas ele não pode virar censura.”
O que “The Golden Glove” tem de provocador, “God Exists, Her Name Is Petrunija” exala de apaziguador. Embora engenhoso na forma como tece o retrato do machismo na Macedônia, o longa é um tanto didático nos momentos em que tenta passar mensagens.
É, ainda assim, um forte concorrente ao Urso de Ouro numa era em que os debates sobre igualdade de gênero mobilizam a indústria audiovisual.
A Petrunija do título, interpretada por Zorica Nusheva, é uma mulher em seus 30 e poucos anos que vive com os pais numa cidade do interior do país balcânico. Graduada em história, ela não tem emprego e acaba de perder mais uma chance como secretária de uma oficina de tecelagem. “Não serve nem para foder”, reclama o sujeito que seria o seu chefe ao entrevistá-la.
Eis que topa com uma tradicional procissão ortodoxa que consiste no padre local atirar uma cruz num rio e os homens do vilarejo entrarem na água gelada para resgatála. Aquele que consegue terá sorte o ano todo. Sem grandes explicações, a moça mergulha ali e consegue reaver o objeto, para revolta geral.
A ação de Petrunija toca num nervo da sociedade macedônia. Acossada pela turba indignada do lado de fora da delegacia, a personagem revela um impasse. Não cometeu crime, uma vez que lei nenhuma a proíbe de fazer o que fez. Ainda assim, é mantida presa, descortinando a promiscuidade entre Igreja e Estado na manutenção do machismo.
Também padece de excesso didatismo outro dos concorrentes fortes dessa edição. “Mr. Jones”, da polonesa Agnieszka Holland, se propõe um manifesto a favor do jornalismo em tempos de regimes autoritários. Aqui, a diretora de “Rastros” e “Filhos da Guerra” recupera a trajetória do repórter galês Gareth Jones, que revelou como o regime stalinista condenou milhões de ucranianos à fome na década de 1930.
Seu relato teria inspirado George Orwell a escrever “A Revolução dos Bichos”, famosa alegoria sobre como os animais se livram da opressão humana numa fazenda para, depois, perpetuarem outra forma de exploração. Holland enche a tela com imagens de porcos, que representam no livro os altos funcionários do Partido Comunista, e faz uma menção ao Grande Irmão, que apareceria em “1984”.
James Norton interpreta o personagem-título, ex-conselheiro de relações internacionais do primeiro-ministro britânico que resolve apurar o que há por trás da misteriosa espiral de crescimento econômico da União Soviética.
A suspeita de algo errado o leva às fazendas comunais da Ucrânia, bem guardado segredo para a prosperidade da superpotência socialista.
É ali, escondido do governo, que Jones percebe que a população agrária está morrendo de fome em meio ao rigoroso inverno sob o descaso do governo central. Cadáveres se acumulam na neve e crianças comem carne humana. O repórter incumbe a si mesmo de revelar a verdade para o mundo, mas terá de se safar de todas as forças políticas, inclusive do Ocidente, que não acham conveniente que ela venha à tona.
Holland constrói essa história como um thriller eletrizante, com um ritmo hollywoodiano que não aparecia em seus outros filmes. Martela sua mensagem da maneira menos sutil possível, com cenas em que a multidão se aglomera em torno de pães mofados tendo ao fundo um cartaz de Stálin distribuindo comida.