Folha de S.Paulo

Filme contundent­e faz da loucura de Van Gogh um caso de lucidez

- Felipe Arrojo Poroger

No Portal da Eternidade **** * Em cartaz. 12 anos. Direção: Julian Schnabel. Elenco: Willem Dafoe, Rupert Friend, Oscar Isaac. Produção: Suíça, Irlanda, Reino Unido, França, EUA, 2018

O cinema não se cansa de Vincent van Gogh. Não bastasse Kurosawa, Robert Altman e Vicente Minelli terem registrado as suas versões, a genialidad­e do artista holandês — entrelaçad­a à sua fama de louco— “merecia mais uma chance de se pronunciar”.

Ou, ao menos, assim tem declarado Julian Schnabel sobre a nova cinebiogra­fia do pintor.

Artista plástico renomado antes de se tornar cineasta, Schnabel —famoso por “O Escafandro e a Borboleta” (2007)— construiu sua carreira de um impulso específico: afeito a histórias reais, o americano trouxe às telas personagen­s que, soterrados pelas diversas circunstân­cias da vida, lutaram para que a arte e a potência criativa não se deixassem destruir. Retratar Van Gogh seria, portanto, uma questão de tempo.

Paris, final do século 19. Tomada de assalto por novos movimentos artísticos e frenética pelos primeiros efeitos da era industrial, a cidade girava como motor de novidades. De um lado, o fascínio por um mundo em ebulição. De outro, a sensação de se sentir esmagado pelas novas dinâmicas sociais.

Viver na metrópole se transforma­va em desafio. Entre testemunha­r uma vida calcada em inovações ou se distanciar lamentando seus impactos, Van Gogh (Willem Dafoe, indicado ao Oscar) fica com a segunda opção.

Na busca pela beleza que a cidade corroeu, muda-se para os pacatos vilarejos de Arles e Auvers-sur-Oise, onde viveria seus últimos anos em reclusão e tristeza.

É neste período em que o filme se situa, circulando por cenas figuras como o pintor Paul Gauguin (Oscar Isaac) e o irmão Theo van Gogh (Rupert Friend), além de retratar a famosa passagem de Vincent pelo manicômio local, internado por cortar a própria orelha.

Até aí nada novo. Já ouvimos essa história. Mas se Van Gogh merecia mesmo mais uma chance de se pronunciar, como afirma Schnabel, a que se deve essa nova investida?

Como insiste o diretor —e o resultado final lhe dá razão—, “No Portal da Eternidade” não é um retrato do pintor. Mais do que apreciação biográfica, o filme traz ao primeiro plano uma discussão que não se esgota: quando a febre pela inovação se fixa como valor maior, algo de nossa humanidade se perde.

Fortes feito escultura —como descreve Gauguin—, as pinceladas de Van Gogh não são apenas uma tentativa de resistir à fugacidade dos novos tempos, mas um manifesto pela eternidade. Seja na apreciação da natureza ou nos poucos vínculos afetivos que não se deixaram corromper, a missão do pintor (e a nossa, agora) é resgatar tudo que não envelhece apesar do tempo.

Mais do que “Com Amor, Vincent” (2017), animação indicada ao Oscar do ano passado —feita por pinturas a óleo—, o novo filme resgata o verdadeiro espírito da forma pós-impression­ista de Van Gogh. O que lá era sofisticaç­ão literal, no filme de Schnabel se revela no foco, na escolha de lentes e movimentos de câmera agitados feito pincel.

Enquanto a maioria das cinebiogra­fias sobre o pintor estava preocupada em reconstitu­ir a sua trajetória, aqui a lógica é a da reconstruç­ão; captar o espírito de uma época, de um personagem e, investigan­do seus conflitos, atualizá-los como ensinament­o.

É assim que a insanidade de Van Gogh ganha o nome de lucidez e um grande filme se constrói.

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