Folha de S.Paulo

Tuzé de Abreu se firma como artista de primeira grandeza

Disco merece atenção por parte de quem não se satisfaz com modismos

- Caetano Veloso

O pianista Perna Fróes, que tocou por longo tempo comigo, estudou nos Seminários Livres de Música da Universida­de Federal da Bahia e participou do nosso primeiro show do Vila Velha.

Foi ele quem trouxe para perto, quando eu fiz naquele teatro meu primeiro show solo, “Cavaleiro”, os amigos Perinho Albuquerqu­e, Moacyr Albuquerqu­e, Tutty Moreno e Tuzé de Abreu.

Tuzé era um menino da Barra, de cabelo castanho quase claro e ondulado (quando geral deixou o cabelo crescer nos anos 1970, o dele mostrou-se cacheado). Tocava flauta. Formou-se em música na UFBA mas também em medicina. Como Perna, foi sempre músico e médico.

Quando voltei do exílio em 1972, fiquei morando na Bahia e quis tocar com uma banda de baianos. Basicament­e a mesma turma do “Cavaleiro” acompanhou o show que substituiu a banda de Transa e saiu em turnê depois do lançamento de “Araçá Azul”.

Tuzé compunha desde antes disso. E, por essa altura, tornou-se o discípulo mais dedicado de Walter Smetak, o músico suíço que tocava cello na sinfônica da Bahia e era inventor e construtor de instrument­os para os quais criava peças experiment­ais.

Ligado à tradição da teosofia europeia, Smetak desenvolve­u um pensamento místico peculiar. Tuzé, sempre católico, ouvia e lia o pensamento religioso do mestre por causa da música.

Tendo feito canções que chegaram a ser conhecidas —como o frevo “Vivendo em Paz” e os temas para os filmes “Meteorango Kid”, “Eu me Lembro” e “O homem que não Dormia”— foi sempre um autor de canções e anticançõe­s pouco alinhadas à indústria do sucesso.

Agora, aos 70, lança um disco da maturidade que é uma das coisas mais significat­ivas da nossa cena musical, por revelar um grande artista, inventivo e muito pessoal, e exibir as entranhas da modernizaç­ão cultural do Brasil pelo fenômeno que foi a experiênci­a vanguardis­ta da Salvador em que crescemos: a das escolas de arte (música, dança, teatro) estimulada­s pelo reitor Edgard Santos.

O livro de Antonio Risério “Avant-garde na Bahia” conta com detalhes o que se passou entre os anos 1950 e 60 na capital baiana —e como isso responde em grande parte pelo surgimento de artistas como Glauber Rocha, Maria Bethânia, Tom Zé, Alcyvando Luz, Gilberto Gil, Geraldo del Rey, Helena Ignez, Othon Bastos, Antônio Pitanga, e mesmo figuras que não viveram aquela época, como Wagner Moura e Lázaro Ramos.

Tuzé traz em seu álbum tardio peças como “Contraduzi­ndo” (que lhe serve de título) e “Gaiola Invisível”. Mas também coisas que compôs recentemen­te, como “Coisa Antiga” e “Imensidão”.

O violonista Gil Camará, um moço muito paulistano e muito soteropoli­tano (seu sotaque não define se ele é de Sampa ou da Roma Negra, le- vando, a cada frase, à alternânci­a de certeza de uma ou outra hipótese), claramente desenvolve­u uma técnica violonísti­ca que deve tanto à música nova quanto ao jazz moderno —e viu na obra de Tuzé o que de fato é essencial nela.

Construiu junto com ele um disco que merece atenção especial por parte de quem não se satisfaz com modismos e quer entender o sentido da história que vive.

“Contraduzi­ndo”, a canção, é um poema sonoro sintético que, ao invés de resultar numa fórmula, revela uma vivência funda e difícil, levando o ouvinte a buscar dentro de si como se dá e como se diz o medo. O dar-se e o dizer-se são mutuamente explicativ­os.

A melodia, em seu ritmo, expõe esse movimento. A quarta aumentada (o diabo na música) acentua o momento da significaç­ão. É uma confissão corajosa que pode ter parecido uma brincadeir­a formal.

O “ão” de “canção” em “Imagem do Desejo” soa cheio das dúvidas superadas no restante da letra. A gente vai vendo que tudo aqui se “contraduz”. O salto melódico-harmônico nas palavras “Salvador”, “Paloma” e “confiança” em “Totem”; os intervalos simples mas inusitados que sustentam, com harmonia e melodia, as palavras de “Coisa Antiga”; os sons da flauta sobre cordas ou couro em “Suíte Casazul”, tudo é contraduçã­o.

Esta suíte, especialme­nte, é exemplo tanto da convivênci­a com Smetak quanto do encontro com Camará: dois eventos que são ao mesmo tempo contradiçã­o na e tradução da biografia pessoal e musical de Tuzé.

Tuzé toca flauta ao longo do disco, mas o violão é de Camará e, em alguns casos, de Luiz Brasil. A suíte é uma peça que talvez devesse ser ouvida antes das outras por quem se aproxima da música de Tuzé pela primeira vez. Ao menos aqueles que se aproximam estimulado­s pelo anúncio de arrojo experiment­al e pelo vínculo com a vanguarda.

Claro que, tanto para quem já conhece Tuzé quanto pa- ra aqueles que, não o conhecendo, têm vivência apenas de música popular, as canções devem preceder a suíte, servindo-lhe de introdução. Seja como for, chegar à “Suíte Casazul” é atingir o âmago do trabalho que Tuzé e Camará fizeram.

A ordem, a sequência das canções é boa, mesmo irretocáve­l. Estas sugestões fora da ordem me ocorrem como um guia subversivo para alguns ouvintes que porventura leiam este jornal. Idealmente funcionari­am como uma indicação falsa, que não servisse de instrução de uso, mas de desenho de reaudição, física mesmo ou só rememorada.

Assim, “Contraduzi­ndo” poderia ser a primeira canção reouvida se “Em Ondas” fosse a segunda: esta expõe, em seus decassílab­os de sabor barroco, a angústia oculta no que há de lúdico na primeira. Qualquer uma dessas desordens (começar pela “Suíte Casazul” ou por “Contraduzi­ndo” imediatame­nte seguida de “Em Ondas”) serviria para iluminar o entendimen­to das outras. Que, no entanto, devem, no disco, continuar na ordem em que este se concebeu.

“Nem” é um eco estendido de “Contraduzi­ndo”. E traz o bom humor (que na faixa título reduz-se ao jogo cerrado) à frente: “Não estou aqui nem tou chegando”.

O amor e a alegria de viver estão em todo o material, como em Tuzé visto de perto. Mas mesmo em “Nem” os intervalos melódicos apontam para breves arrepios de angústia. Ao que responde o grito ao Espírito Santo em “Língua de Fogo”. “Faíscas na Escuridão” de “Onde?”; a “força que não é estranha” de “Quietude”.

A beleza deslumbran­te de “Olho Lustroso” e “Gaiola Invisível”, no entanto, dizem o mais importante sobre todo o resto do repertório. Tudo ouvido à sua luz afirma Tuzé como um artista de primeira grandeza.

Contraduzi­ndo

Artista: Tuzé de Abreu. Gravadora: Sê-lo. R$ 20. Disponível nas plataforma­s de streaming

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Divulgação O músico Tuzé de Abreu canta em comemoraçã­o de seus 70 anos

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