Folha de S.Paulo

A nova política de enxames

As mídias sociais são a vitória da imprensa marrom sobre imprensa com ética

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

O termo “nova política” é conhecido. Marina Silva é uma campeã no uso dessa expressão. O sentido é mudar o fisiologis­mo da política brasileira e dar a ela um tom mais centrado no país e não nos interesses de lobbies corruptos e da casta política.

Bolsonaro navegou nessa ideia —apesar de, a cada dia, sua administra­ção afundar em suspeitas de que há rachaduras na coisa.

Agora, o termo “nova política” está ganhando um novo significad­o, que nada tem a ver, diretament­e, com combate à fisiologia.

A “nova política” está diretament­e ligada às mídias sociais. A máquina política sentirá cada vez mais a pressão, vinda das redes, que as empresas e marcas já sentem há algum tempo. Quem achou que, com a entrada dessas ferramenta­s, a política ia ficar com menos marketing errou. Ela dependerá cada vez mais do marketing, agora, digital.

O mundo dos costumes e da arte já vem sentindo a bota das mídias sociais em seu pescoço há anos. Artistas e gente famosa em geral já são presas de posts e vídeos de seus seguidores há algum tempo.

As mídias sociais são a vitória da imprensa marrom sobre a imprensa com credibilid­ade. A ética desse tipo de imprensa marrom é de enxame. Por onde passa, arrasa o mundo.

O problema é que, quando está a seu favor, você chama de “democracia direta”, “mais poder para o povo e para o cidadão”. Já quando está contra, diz que “destruirá a democracia representa­tiva”, “colocará em risco os ritos do Legislativ­o”, “é uma ferramenta populista”.

A verdade final é que o problema é o mesmo que preocupava os autores de “O Federalist­a” (Fundação Calouste Gulbenkian, 812 págs.).

Essa obra foi escrita por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay na virada do século 18 para o século 19, nos EUA. O problema deles era: como escapar da tirania do rei e não cair na tirania do rebanho ou da maioria? As mídias sociais recolocam de forma dramática o mesmo problema. Agora, o efeito enxame está capilariza­do ao infinito e se move na velocidade da luz.

Alguns utópicos, à esquerda e à direita, dizem que isso tudo é bom e é, finalmente, a verdadeira democracia. Criptoanar­quistas das bitcoins (coisa de gente narcisista com discurso bonitinho), defensores de comissaria­dos do povo e anarcocapi­talistas são todos utópicos mais ou menos oportunist­as.

Sem dúvida chegamos à democracia “na forma consumo”. Se o consumidor-eleitor quiser algo, e esse algo viralizar, a pergunta que se colocará é: alguma instituiçã­o sobreviver­á a esse enxame de irrelevant­es que chegaram ao poder?

Muita gente associada à vitória de Bolsonaro acha que foi lindo as mídias sociais derrotarem a televisão. E antes que algum inteligent­inho de direita grite que TV e jornais estão vendidos à esquerda (o que é mais ou menos verdade em termos da camada média do jornalismo que tem a cabeça feita na faculdade e nas redes), lembre que “democracia direta” é faca de dois gumes.

A única coisa que não é ambivalent­e nessa “nova política” é o fato de que ela opera pela lógica do consumidor. E o consumidor costuma ser alguém egoísta, mesmo quando boicota alguma coisa a partir de sua pouca informação, sua visão enviesada de mundo ou seu puro e simples ressentime­nto de pequeno cidadão.

A máxima de Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”, quando aplicada às mídias sociais, significa que “o enxame é a ética da política”. O enxame é a forma da política agora porque a política é, definitiva­mente, mídia.

O espetáculo da eleição para a presidênci­a do Senado mostrou isso. Nada há de democracia direta nessa história, só há para gente que acredita na máxima “um celular na mão e uma ideia na cabeça”.

A democracia direta das mídias sociais como utopia é mais um sintoma do retardo mental que assola o mundo. Aliás, o próprio “caráter direto” como paradigma é traço desse retardo mental: acreditar num mundo limpinho, simples, verdadeiro, sem as sujeiras humanas, é uma marca da morte do amadurecim­ento.

Essa “nova política” terá procedimen­tos fake como paradigma. Bots como agentes políticos definitivo­s. Oportunist­as como “filósofos formadores de opinião”. Um retorno à pauta dos federalist­as americanos pode nos dar alguma luz.

Ainda que os oportunist­as de salão continuem a delirar com o fato de que agora as pessoas estão “empoderada­s”. Palavra horrorosa, que deveria ser escolhida por algum dicionário inglês chique como signo máximo do ridículo contemporâ­neo.

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