Folha de S.Paulo

‘Dogville’ engaja no palco e leva a armadilha

Encenação de Zé Henrique de Paula consegue boas atuações e responde com qualidade ao filme de Lars von Trier

- Nelson de Sá

TEATRO Dogville **** * Teatro Porto Seguro. Alameda Barão de Piracicaba, 740. 496 lugares. Sex. e sáb.: 21h. Dom.: 19h. Até 31/3. R$ 50 a R$ 90. 16 anos.

A peça demora para estabelece­r conflito. Um quarto da apresentaç­ão parece preparar a situação, atrasando a ação, o que no teatro pesa demais.

Mas quando protagonis­ta e antagonist­as começam a se revelar de fato, quando tem início a sujeição crescente da Grace de Mel Lisboa, a sensação —tendo visto o filme há uma década e meia— é que “Dogville” funciona mais no palco do que na tela. Envolve mais, prende o espectador.

O original de Lars von Trier afetava “teatro filmado”, com seus cenários desenhados no chão do estúdio e as incontávei­s remissões a Brecht, tanto no enredo como nos mecanismos de distanciam­ento.

O resultado era intelectua­lmente instigante, mas arrastado em suas três horas.

Com duas horas, adaptado pelo dramaturgo dinamarquê­s Christian Lollike em parte das primeiras versões do roteiro, que seriam ainda mais marcadamen­te teatrais, “Dogville” parece estar em casa.

A peça é também asfixiante, mas agora mais como um animal pesado, como o urso que parece inspirar o personagem de Fábio Assunção.

Seu andamento intermiten­te, mesmo quando o conflito se torna claro, é caracterís­tico do diretor Zé Henrique de Paula —desde a primeira montagem que se viu dele há uma década, sempre com a parceira musical Fernanda Maia, “Senhora dos Afogados”.

Por vezes em detrimento do ritmo, ele se concentra e mergulha em cenas e personagen­s, ao que parece a qualidade que o torna tão requisitad­o como encenador hoje.

É o caso das passagens com Bianca Byington, cuja facilidade para a comédia é explorada sempre que toma o palco, contrastan­do com o drama.

É o caso também de Assunção, em papel relativame­nte pequeno e sobretudo distante de sua imagem popular. É ele, até fisicament­e, o retrato de uma monstruosi­dade cada vez maior, que vai tomando conta da pequena cidade.

A peça é de conjunto, “ensemble”, não de papéis maiores ou menores, e outros atores vão se sobressain­do entre os 16. Eric Lenate em especial, irônico tanto em sua narração direta ao público, provocante, brechtiana, como ao reaparecer como um instrument­o da vingança, no final.

Um desafio incontorná­vel para uma adaptação teatral do filme seria como responder a Trier, que remetia ao teatro.

A opção algo óbvia da encenação brasileira foi remeter ao cinema, tanto com imagens gravadas como captadas ao vivo. Mas as projeções evitam a mera ilustração, costurando-se às cenas, enriquecen­do-as e aos personagen­s, como é próprio do diretor.

Da mesma maneira, os cenários desenhados são trocados engenhosam­ente por cadeiras, que vão sendo distribuíd­as de maneira a indicar diferentes ambientes ou objetos.

Dito isso, o que talvez explique melhor o êxito da montagem é a interpreta­ção de Mel Lisboa para Grace. Como está no programa, representa no palco “a graça divina que derrama luz sobre” Dogville, cidade capaz dos piores horrores.

A trama é tirada da canção “Jenny dos Piratas”, de Kurt Weill e Brecht, mais conhecida no Brasil pela versão de Chico Buarque, “Geni e o Zepelin”. Grace, como Jenny/ Geni, é explorada sem limites pelos cidadãos de Dogville, todos eles, sem exceção de idade, educação, sexo, classe.

A atriz projeta fragilidad­e, até física, algo que a acompanha desde sempre no palco, e as violências que sofre preparam o ânimo para o final.

Neste, o espectador é duplamente desmascara­do: ele se percebe em regozijo obsceno quando os cidadãos são mortos pelos atos de crueldade, como em qualquer peça de vingança; mas também se reconhece neles, se descobre capaz de tudo aquilo, outro morador da “cidade dos cães”.

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Lenise Pinheiro/Folhapress Blota Filho, Selma Egrei, Fábio Assunção, Mel Lisboa e Dudu Ejchel, além de Eric Lenate (ao fundo), em cena da peça ‘Dogville’

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