Folha de S.Paulo

Mônica Bergamo

O ‘cala a boca, Boechat!’ veio cedo demais

- Mônica Bergamo

E ele se calou, de forma trágica. Nunca mais vamos conversar todas as manhãs, como fizemos religiosam­ente durante mais de dez anos na rádio BandNews FM.

Boechat às vezes me interrompi­a tanto, em especial nos primeiros anos da minha participaç­ão na rádio, que uma das minhas tias, Ruth, ficava chateada. “Ele não deixa você falar!”, reclamava ela.

Um dia comentei isso com Boechat. Que adorou.

Além de citá-la no ar e pedir desculpas, criou um bordão, uma palavra de ordem: todas as vezes em que percebia que me cortava, ele mesmo gritava: “Cala a boca, Boechat!”

Por essas e outras, era comum cairmos na gargalhada no meio dos comentário­s.

Era ainda mais frequente ele me interrompe­r com uma pergunta inusitada sobre o tema de que eu tratava, um questionam­ento inesperado, com o pedido de uma melhor contextual­ização.

Ou, pior: às vezes, abria uma divergênci­a ao vivo e a cores (o programa é transmitid­o pela internet).

Um sufoco! Ainda que a minha participaç­ão durasse cerca de cinco minutos, o patamar de exigência de Boechat, em meio a piadas e brincadeir­as, era o mais alto possível.

Com ele, não tinha enrolação. Ou sabe do que está tratando, ou passa vexame.

Uma vez eu falava sobre como a crise internacio­nal influía na economia brasileira. E ele: “Imagina! E os outros países da América Latina? Por que não estão mal? E o Chile?”

E eu, com números: “A economia chilena despencou assim e assim”. Ele insistiu: “E a Colômbia?”. O desemprego aumentou. Depois do terceiro ou quarto país, Boechat enfim cedeu.

Sou testemunha de que era idolatrado pela maior parte dos ouvintes. Foram centenas as vezes em que, no táxi ou no Uber, eu falava ao telefone com alguém. E era reconhecid­a pela voz.

“Você é a Mônica Bergamo?”. Sim, sou eu. “A colunista de todas as manhãs [como ele me apresentav­a]?” Eu mesma. No começo, imaginava que seria elogiada ou criticada.

Mas quase sempre os motoristas queriam mesmo era saber do Boechat, ele sim o companheir­o deles de todas as manhãs.

E choviam perguntas. Como ele era? E a mulher dele, a doce Veruska –era assim que Boechat se referia a ela no ar, quase todos os dias.

Depois da notícia da morte, centenas de taxistas foram até a sede do Grupo Bandeirant­es, no Morumbi. Deram várias voltas no quarteirão, buzinando sem parar, numa homenagem cheia de emoção.

Eu estava perto de minha casa quando recebi a notícia. Minha filha começou a telefonar sem parar. Voltei.

Encontrei a ela, que só esteve com Boechat pessoalmen­te uma vez, aos prantos.

A Nice, que trabalha conosco, também chorava muito. Me disse que o marido estava desolado.

Mensagens de amigos e familiares lotaram o meu WhatsApp. Todos inconforma­dos com a morte de Boechat.

Certa vez, no começo da minha participaç­ão matinal, ele me surpreende­u: “Mônica, você vai chorar quando eu morrer?”.

Comecei a dar risada. Ele disse algo como “estão vendo, estão vendo?”. E caiu na gargalhada também.

A hora da despedida chegou. Muito mais cedo do que nós imaginávam­os.

O patamar de exigência de Boechat, em meio a piadas e brincadeir­as, era o mais alto possível. Com ele, não tinha enrolação

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