Folha de S.Paulo

O que fazer do Minha Casa, Minha Vida

Programa deveria acabar ou ter mudança radical

- Philip Yang

Mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) e fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole)

Os objetivos nobres do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e seus eventuais méritos parciais não devem obscurecer o fracasso retumbante de seu resultado global neste ano em que a iniciativa completa seu décimo aniversári­o: o déficit habitacion­al brasileiro aumentou em vez de diminuir no período, tendo saltado de 6 milhões (2009) para 7,7 milhões de moradias (2018).

Pior, a maior parte das unidades entregues está isolada nas periferias das cidades. Degradam mananciais e áreas ambientalm­ente sensíveis. Seus moradores não contam com infraestru­tura mínima e passam horas no trânsito para chegar a seus destinos diários. O espraiamen­to da cidade agrava os nossos já baixos índices de produtivid­ade.

Ante tamanho fiasco, qualquer governo, de direita ou esquerda, deveria interrompe­r o programa ou no mínimo buscar uma correção radical de rumos.

Afinal, o MCMV consumiu o mesmo volume de recursos que os EUA gastaram com o Plano Marshall para reconstrui­r a Europa após a Segunda Guerra Mundial (US$ 118 bilhões, em dólares de 2018) sem nem sequer dar início à solução do problema.

O que fazer? Sugerem-se aqui três linhas de ação.

Primeiro: ofertar moradias sociais como um serviço público e não como um produto imobiliári­o.

Em termos práticos, trata-se de realizar a contrataçã­o de obras do MCMV no marco regulatóri­o das concessões —que coloca o foco do contrato na qualidade do serviço prestado— e não mais sob o regime convencion­al de contrataçã­o por empreitada, que mede apenas quantidade­s sem qualquer cuidado com qualidade.

Segundo: utilizar o gigantesco estoque de imóveis públicos situados em áreas centrais para a construção de moradias. As três esferas de governo são detentoras de grandes imóveis ociosos ou subutiliza­dos, situados em centros urbanos. É crime contra o povo deixá-los ao relento enquanto uma distopia urbana é construída em zonas distantes com apoio do MCMV.

O uso de propriedad­es públicas — combinado com a aplicação inteligent­e do marco regulatóri­o da infraestru­tura e do urbanismo (zoneamento­s, planos diretores e PIUs)— constitui uma excelente alternativ­a para a inserção de moradias em áreas centrais.

Terceiro: alocar parte dos recursos de política habitacion­al a programas de aluguel social. Mediante destinação de verbas para a locação de imóveis, novos ou existentes, o alcance de programas habitacion­ais poderá ser muito mais abrangente. Abandona-se o ideal patrimonia­lista da casa própria, para uma visão funcional de atendiment­o das necessidad­es de população que, numa economia moderna, não quer mais estar atrelada a um só endereço o resto da vida.

Não se trata aqui de demonizar um governo ou empresas que atuaram no programa. Construtor­as do MCMV, muitas das quais eficientes e corretas, auferiram lucros excepciona­is de forma legítima no âmbito do programa.

No plano construtiv­o ou urbano (ou em ambos), os produtos gerados foram ruins não necessaria­mente por um problema de índole empresaria­l, mas por erros graves na conceituaç­ão do programa, que não estabelece­u parâmetros de localizaçã­o das moradias entre os critérios de concessão de crédito. Por essa razão, o MCMV, verdadeira galinha dos ovos de ouro que hoje movimenta metade do setor imobiliári­o, precisa ser descontinu­ado.

O foco das sugestões acima é de incluir a habitação social na lógica da oferta de serviços públicos, seguindo o exemplo de outros setores da infraestru­tura (transporte­s, saúde pública etc.) que, a partir da Constituiç­ão de 1988, aderiram à modalidade de contrataçã­o que enfatiza a regulação e controle, por critérios objetivos de mensuração, do desempenho daqueles que prestam os serviços públicos contratado­s.

Se ainda quisermos construir um Brasil menos polarizado, territoria­lmente mais integrado, eficiente e socialment­e coeso, definir uma nova rota de política habitacion­al é medida urgente, além de imperativo de natureza moral.

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