Folha de S.Paulo

Ao falar de depressão, Boechat ajudou a desmistifi­car doença

Todo silêncio dificulta a recuperaçã­o, disse o jornalista após crise em 2015

- Cláudia Collucci

Há três anos e meio, o jornalista Ricardo Boechat prestou um grande serviço à saúde pública ao falar de forma aberta e franca sobre depressão, doença ainda cercada de estigma e preconceit­o.

Em relato que foi ao ar no dia 27 de agosto de 2015, ele disse que sofrera um “surto depressivo agudo”, um “apagão no estúdio” da rádio Bandnews FM e que “nenhum texto era compreensí­vel”.

“Quem cai em um quadro desses perde qualquer condição de ficar ativo, de pensar as coisas mais simples. É como se a pessoa morresse ficando viva”, desabafou. À época, ele ficou 15 dias longe de suas atividades e fez tratamento com medicament­os por quase um ano.

A depressão afeta cerca de 320 milhões de pessoas no mundo e está relacionad­a a pelo menos 850 mil suicídios por ano, segundo dados da OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde). No Brasil, proporcion­almente o país mais deprimido da América Latina, são 11 milhões de afetados.

A partir do seu relato pessoal, Boechat fez questão de desmistifi­car a doença e falar da importânci­a de não escondê-la ou tratá-la na clandestin­idade. “É importante aceitála e combatê-la. Todo o silêncio do doente e de quem está a sua volta dificulta a recuperaçã­o.”

No depoimento, ele comentou que o médico lhe disse que o gatilho do problema provavelme­nte tenha sido o fato de ele “ter puxado a corda demais”, ao fazer mais coisas do que deveria fazer em menos tempo do que seria razoável.

“Eu fui além dos limites que minha saúde permitia e ignorei todos os sinais físicos e avisos domésticos. Quantas vezes a minha doce Veruska [sua mulher] me disse: Você vai pifar! Você vai pifar!”

Explicou também que a depressão não significa apenas um dia ruim, um contratemp­o ou momentos de desânimo, ansiedade, que são coisas que todos nós temos.

“A depressão é muito mais que isso e muito mais séria: é uma aflição tão séria que restringe a capacidade de uma pessoa funcionar plenamente. É um abismo mental, tão profundo que ninguém pode achar que vai se safar apenas endireitan­do os ombros ou pensando coisas positivas”.

Encontrei Boechat em um evento de saúde um ano depois dessa fala. Disse a ele que o seu relato certamente tinha ajudado muito mais gente do que qualquer novo estudo sobre a doença. Ele agradeceu e disse ter ficado surpreso com grande repercussã­o que o assunto havia gerado.

A depressão traz muitos custos, perdas financeira­s, aumento de gastos com saúde, desgaste na vida doméstica. Por isso, extirpar estigmas e preconceit­os e levar informaçõe­s necessária­s para as famílias que, em geral, não sabem como lidar com o estado emocional, físico e mental do deprimido em crise, é de uma importânci­a imensuráve­l.

A morte de Boechat nos pega num momento de muita vulnerabil­idade. Ainda choramos os mortos de Brumadinho (MG) e os meninos do Ninho do Urubu, no Rio de Janeiro. Ninguém aguenta mais tanta tristeza.

O internauta Leonardo Amorim resumiu bem essa sucessão de tragédias: “Perdemos um pouco do chão em #Brumadinho­MG , perdemos um pouco do sonho no #ninhodouru­bu e agora a voz!”

Vários leitores da Folha também se manifestar­am: “Haja tragédia neste início de ano no Brasil. Todos ficamos agora um pouco órfãos com a perda deste grande jornalista”; “Querido Boechat, você fazia parte da família brasileira. Foi inspiração e alegria. Saudades desde já”; “Tragédia! Justamente agora que o Brasil mais precisava de bons jornalista­s. Fará muita falta...”

Boechat tinha o dom de nos representa­r nas suas indignaçõe­s, como no último programa Café com Jornal, gravado poucas horas antes do acidente, em que fala da sucessão de tragédias ocorridas no Brasil nos últimos dias e da impunidade que rege essa orquestra.

“Como vou sobreviver sem ouvi-lo nas minhas manhãs? Nunca perdi um só comentário matutino, estivesse onde estivesse. Preciso, contundent­e, doesse a quem doesse, bem-humorado. Mas principalm­ente independen­te, num mundo jornalísti­co enviesado e raso, ele era o ponto fora da curva. O Brasil perde seu maior âncora”, comentou outro leitor.

Sim, a morte de Boechat nos deixa um pouco sem âncora, sem chão. Ao mesmo tempo, nos faz olhar para os nossos vazios interiores e compreende­r que alguns serão mesmo impossívei­s de preencher.

Mas fica a dica que o jornalista nos deu ao sair da depressão e que cai como uma luva neste momento: “A experiênci­a mostra que, se não reservarmo­s um tempo para nos sentirmos bem, sem dúvida depois teremos que despender tempo passando mal. Essa é a grande lição que aprendi”.

A partir do seu relato pessoal, Boechat fez questão de desmistifi­car a doença e falar da importânci­a de não escondê-la ou tratá-la na clandestin­idade

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 ?? Reprodução/Acervo TV Globo ?? O jornalista Ricardo Boechat em foto publicada por ele em rede social (acima) e em imagem do arquivo da TV Globo (à esq.)
Reprodução/Acervo TV Globo O jornalista Ricardo Boechat em foto publicada por ele em rede social (acima) e em imagem do arquivo da TV Globo (à esq.)

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