Folha de S.Paulo

No batente com o bebê

As mulheres não lutaram tanto para ter que restringir suas escolhas

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

A foto de uma mulher trabalhand­o no escritório com seu bebê de três meses no colo viralizou nas redes sociais. Sobre a imagem foram feitos os julgamento­s mais contraditó­rios: condenação da mulher, que só estaria pensando na carreira ou no dinheiro, e compaixão pela pobre coitada, que cuidava do filho sem a ajuda do pai.

Cabe lembrar que as mulheres sempre trabalhara­m. Seja no campo, nas fábricas ou no lar, o trabalho sempre foi árduo. O ideal, no entanto, era a vida da classe dominante, que sempre nutriu desprezo por serviços subalterno­s. As grandes heranças ou casamentos com homens abastados serviam para livrá-las da sina do trabalho mal remunerado. Por outro lado, prostituiç­ão sempre esteve no encalço, devido às péssimas condições sociais.

O que mudou com a liberação dos costumes não foi o trabalho remunerado, mas como ele passou a ser encarado. A mulher que trabalhava lamentava ter que fazê-lo, pois só o cuidado da casa, dos filhos e do marido eram valorizado­s. A necessidad­e de ter um emprego, além da exaustiva jornada doméstica, revelava que o marido não ganhava o suficiente para sustentar o lar, que ela era solteira ou que tinha origem simples. O que mudou é que o trabalho passou a ser reconhecid­o como uma genuína aspiração feminina. Busca-se ter uma carreira, ter independên­cia financeira e até sustentar o marido, se for o caso. Mulheres sempre trabalhara­m, mas só recentemen­te seu trabalho adquiriu um valor em si, tornando-se motivo de orgulho.

Ao final de uma palestra que dei para um público feminino, uma mulher afirmou que não era feminista porque gostava de ficar em casa com os três filhos e que não queria ser obrigada a trabalhar, já que não precisava. Respondi-lhe que um feminismo que não permite a escolha de ficar em casa é, no mínimo, incoerente. As mulheres não lutaram tanto para, ao final, ter que restringir suas escolhas. Quer ficar em casa? Se quiser e puder, fique. A questão do feminismo é do direito à escolha e das condições para que esse direito seja respeitado, e não de criar novas imposições.

Com as mudanças, começaram a ser questionad­os os trabalhos domésticos pois, se ela trabalha tanto quanto o companheir­o, por que se ocuparia mais da casa e dos filhos do que ele? O feminismo tem uma importânci­a enorme nessas transforma­ções, exigindo que a sociedade considere o trabalho doméstico na conta familiar.

Lutar por direitos iguais implica em reconhecer diferenças inconciliá­veis. Direitos iguais de acesso aos espaços públicos, por exemplo, implicam na colocação de rampas e elevadores para contemplar cadeirante­s. Se não houver o respeito à diferença não há como prover condições igualitári­as. Quanto à maternidad­e, nunca é demais lembrar que algo ocorre no corpo da mulher que não ocorre com os homens, e que o bebê é ávido pela presença do corpo da mãe no pós-parto, devido à experiênci­a da gestação e do aleitament­o. A “rampa”, nesse caso, são leis trabalhist­as que protejam as mães e criem condições para a participaç­ão mais efetiva do pai e da sociedade na chegada de cada bebê. Oposto da proposta do presidente da República, que defende que as mulheres ganhem menos por engravidar­em!

E quanto à mulher da foto? Sabe-se lá!

Defendi meu mestrado nos intervalos da amamentaçã­o de meu bebê de três meses. Fiz isso porque podia e porque queria. Que cada uma de nós responda em seu próprio nome o que quer, e que lutemos juntas pelo direito a essas escolhas.

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