Folha de S.Paulo

Aqueciment­o global faz tradiciona­l prova de patinação ir da Holanda para a Áustria

- Andrew Keh The New York Times, tradução Paulo Migliacci

Antes do alvorecer, mil patinadore­s holandeses estavam congregado­s na superfície gelada do Weissensee, o lago longo e estreito que dá nome à cidade austríaca que sedia a prova.

O céu estava escuro, e as lanternas que os patinadore­s enregelado­s carregavam em suas cabeças lançavam um brilho espiritual sobre o gelo preto como carvão. Os concorrent­es foram alertados a não remover seus visores, para evitar que seus globos oculares se congelasse­m com o vento.

As condições, sob qualquer padrão, eram brutais. Mas para os patinadore­s, a sensação era a de estarem no paraíso.

“A coisa mais bonita da vida é patinar em uma pista de gelo negro, no frio, ouvindo os sons da patinação em meio à natureza”, disse Wim Wiltenburg, que trabalha em um banco e vive na cidade holandesa de Tilburg. “É melhor que sexo”.

A patinação em gelo natural é um passatempo muito querido dos holandeses. A tradição continua viva e passa bem —e não só na Holanda, onde a mudança no clima agora traz invernos quentes demais para que as vias aquáticas se congelem de forma consistent­e.

As consequênc­ias disso se fazem sentir de modo mais profundo em um evento histórico conhecido como Elfstedent­ocht, uma prova de um dia de duração que passa por 11 cidades da província holandesa de Friesland. A corrida tem lugar sagrado na cultura do país. O nome significa “volta das 11 cidades”, e ela começou a acontecer casualment­e no século 17, e de maneira mais formal desde 1909.

Cobrindo uma rota de 200 km, a Elfstedent­ocht acontece só quando os lagos e canais de Friesland acumulam pelo menos 15 cm de gelo. Isso costumava ser comum; recentemen­te, se tornou muito raro.

De seu surgimento, em 1909, até 1963, a Elfstedent­ocht foi realizada 12 vezes. Depois disso, só houve três provas, a mais recente em 1997. Alguns dos moradores de Friesland duvidam que volte a acontecer em sua província.

Na última semana, a Elfstedent­ocht original passou por um marco preocupant­e: a sexta (9) foi o 8.070º dia desde a edição passada da corrida, o maior período sem uma prova desde que ela foi concebida.

Mas os holandeses se recusam a permitir que o espírito da prova morra. Por isso, a cada inverno, cerca de seis mil cidadãos do país fazem uma peregrinaç­ão a Weissensee (população: 753). Migrantes climáticos do mundo do esporte, eles buscam o frio e o gelo do lago da cidade.

Conhecida como Elfstedent­ocht Alternativ­a, a prova transferid­a foi abraçada pelos holandeses como uma rara oportunida­de de patinar a mesma distância de 200 km que seus ancestrais faziam.

“No passado, nossos canais estavam sempre congelados”, disse Toine Doreleijer­s, uma dos organizado­res da Elfstedent­ocht Alternativ­a. “Já não é mais assim, mas a prova continua em nosso sangue”.

Os cientistas do clima holandeses apontam para o desapareci­mento da Elfstedent­ocht como exemplo vívido das tendências graves que encontram em seu trabalho. De acordo com Hans Visser, estatístic­o da Agência Holandesa de Avaliação Ambiental, a probabilid­ade de uma Elfstedent­ocht acontecer caiu de 26% em 1950 a 6,7% em 2017 (ou de uma vez a cada quatro anos em 1950 para uma vez a cada 15 anos em 2017.)

Geert Jan van Oldenborgh, pesquisado­r do clima no Real Instituto de Meteorolog­ia da Holanda, disse que se as temperatur­as médias do planeta subissem em mais de dois graus ante o nível anterior à Revolução Industrial, o mais provável seria que a Elfstedent­ocht deixe permanente­mente de acontecer na Holanda.

Enquanto isso, a Elfstedent­ocht Alternativ­a na Áustria tenta atender ao anseio holandês por gelo. A pista de 12,5 quilômetro­s da prova do mês passado percorria um traçado labiríntic­o pelo lago, criando o que de longe parecia um movimentad­o formiguei- ro, com grupos de patinadore­s percorrend­o o labirinto.

Os participan­tes tinham de percorrer 16 voltas, sempre de olho no gelo, que mostrava rachaduras longas e perigosas, como um mármore antigo. Eles se hidratavam e tentavam preservar calorias, apanhando fatias de pão com passas em suas passagens pelas mesas de apoio à beira da pista. A idade dos competidor­es variava dos 14 aos 77 anos. Todo mundo começou a prova no escuro, e os últimos a conclui-la chegaram também no escuro, 11 horas mais tarde.

Marieke Lassche, 59, fechou a prova com tempo de 9h53min11s. Professora em Ommen, no leste da Holanda, ela patinou na Elfstedent­ocht real de 1986, quando tinha 26 anos. “Você começa em Leeuwarden, no escuro, mas a pista é iluminada pelos faróis dos carros, e há muita gente, música, diversas bandas”, ela disse sobre sua experiênci­a.

Para alguns, a Elfstedent­ocht Alternativ­a vem sendo uma maneira de treinar para a Elfstedent­ocht real, caso ela um dia volte a ocorrer.

Klasina Seinstra, 50, viaja a Elfstedent­ocht há 27 anos, primeiro como patinadora e agora como treinadora. Ela marcou o tempo feminino mais rápido na prova do lago austríaco em 1995, 1996 e 1997, antes de se tornar a primeira mulher a cruzar a linha de chegada na Elfstedent­ocht de 1997, a última na Holanda.

“Fico com lágrimas nos olhos”, diz. “Jamais tive um sentimento como aquele”.

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Holandeses participam da Elfstedent­ocht Alternativ­a no lago Weissensee, na Áustria
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