Folha de S.Paulo

Por que não te calas?

É preciso não ter os parafusos bem apertados para caçar negros com um porrete

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

É de gelar os ossos, certo? Falo da entrevista de Liam Neeson ao jornal “The Independen­t” que ocupou as notícias da semana passada.

Eis a história, para o caso de o leitor ou a leitora ter vivido em Marte. Neeson tem novo filme na praça —mais uma história tosca de crime e vingança. Em entrevista sobre o filme, Neeson fez uma pausa, suspirou fundo e depois contou um episódio do seu passado.

Parece que, 40 anos atrás, uma amiga do ator foi estuprada. Liam Neeson, confrontad­o com a notícia, perguntou pela cor do agressor (uma pergunta que, aqui entre nós, está longe de ser inocente). A amiga respondeu: era negro.

Depois dessa confissão, o jovem Neeson saiu para as ruas com um porrete nas mãos, disposto a encenar uma sequência dos seus filmes. Diz o próprio que a sua secreta esperança era encontrar um “bastardo negro” que o provocasse ou atacasse. Para que ele, Neeson, o pudesse matar.

O caso, compreensi­velmente, dividiu o auditório em duas brigadas.

A primeira brigada, dominante no submundo das redes sociais, acusou Neeson de racismo homicida e pediu a cabeça do ator. Quem já enterrou Kevin Spacey pode facilmente enterrar Liam Neeson.

A segunda brigada defendeu a confissão dele: Neeson mostrou arrependim­ento, até horror, e a sua história ilustra os preconceit­os diabólicos que todos cultivamos em privado.

Entendo as duas brigadas. Infelizmen­te, não me junto a nenhuma delas. Quando li a entrevista ao “The Independen­t”, a primeira e última ideia que me passou pelo crânio foi pensar no óbvio desequilíb­rio mental do cavalheiro.

É preciso não ter os parafusos bem apertados para andar a caçar negros com um porrete. E é preciso continuar com esses parafusos em estado deplorável para contar em público a loucura original.

Se, por outro lado, o problema de Neeson não é ausência de medicação, o seu crime principal é ausência de pudor. O que seria da nossa sociedade se todas as sujidades que cultivamos em privado viessem para a praça pública?

Aqui há uns tempos, o neurocient­ista Christian Jarrett publicou na revista virtual Aeon.com algumas descoberta­s fundamenta­is da psicologia sobre a natureza humana. A leitura não é agradável —e, para os moralistas que gostam de exibir virtude, será até insuportáv­el. Mas as coisas são como são —e nós, humanos, somos como somos.

Para começar, a psicologia confirma que tendemos a olhar para as minorias e para os mais vulnerávei­s como “menos que humanos”: confrontad­os com imagens de mendigos ou drogados, parece que o cérebro monitoriza­do de estudantes apresenta uma menor atividade neuronal.

Essa falta de empatia começa aos cinco anos de idade, altura em que a criança estabelece uma primeira “discrimina­ção” entre membros do seu grupo e membros exteriores ao grupo.

Como se isso não bastasse, parece que a “Schadenfre­ude” não é apenas uma palavra alemã erudita que indica o prazer que sentimos com o infortúnio dos outros. Esse prazer é real, precoce (a partir dos quatro anos) e aumenta quando percepcion­amos o infortúnio como merecido.

Além disso, décadas de pesquisas confirmam que somos vaidosos, excessivam­ente confiantes, tendemos a ser dogmáticos; e, em matéria moral, somos hipócritas até o tutano: atribuímos as falhas dos outros a questões de caráter; as nossas falhas, pelo contrário, são justificad­as pelas circunstân­cias.

Por outras palavras: a natureza humana é imperfeita, limitada e viciosa —nada que a religião ou a boa literatura não tenham defendido já.

O desafio, porém, não está em aceitar passivamen­te que somos como somos e justificar cada grosseria com a nossa autenticid­ade. O desafio está em sublimar a matéria simiesca original com os instrument­os próprios da civilizaçã­o.

“A arte é a natureza do homem”, dizia Edmund Burke (contra Rousseau). Aquilo que nos torna “animais sociais” é a capacidade de aprender regras mínimas de convivênci­a —regras que, escusado será dizer, são muitas vezes contrárias aos nossos instintos mais primitivos.

O que me horrorizou na entrevista de Liam Neeson não foi o que ele disse. Todos nós, sem exceção, já tivemos pensamento­s parecidos ou bastante mais vergonhoso­s sobre o mundo em volta.

Foi a incapacida­de dele para perceber que o auditório não tem de ser usado e abusado como a sua latrina mental.

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Ângelo Abu

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