Folha de S.Paulo

Mostra de Paul Klee revê mescla de leveza e horrores da guerra

Exposicao reline osanjostor­tos, humanos demais, e as abstracoes fulgurante­s de Paul Klee, artist marca do pelos horrores da guerra

- Silas Martí

Os anjos de Paul Klee são feios, tortos, feitos de linhas soltas desajustad­as, às vezes caindo aos pedaços. Talvez porque fossem muito humanos, cheios de falhas.

Nas últimas duas décadas de vida, o artista suíço aos poucos foi largando as abstrações geométrica­s que fizeram dele um dos maiores nomes do modernismo para inventar essa revoada de homens-pássaro, figuras que se tornaram alegorias do sangrento início do século 20, com a violência do nazismo e a carnificin­a da Segunda Guerra na sequência —ele morreu, aos 60, em 1940.

Viveu o suficiente para plasmar em pinturas, aquarelas e desenhos o horror de sua época entrecorta­do por momentos de estranha graça e leveza.

Esses dois lados complement­ares —e nunca contraditó­rios— de sua obra se deixam ver agora numa retrospect­iva dedicada ao artista, que ocupa todo o Centro Cultural Banco do Brasil paulistano e depois entra em turnê pelo país, passando por Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Não faltam ali seus anjos soprados entre vida e morte, seres que se dissolvem no éter do papel branco. Suas feições, algo entre a simplicida­de dos desenhos infantis e a economia formal da chamada arte primitiva, lembram tanto as máscaras africanas que então faziam a cabeça dos modernista­s quanto os traços de seu próprio rosto acometido pela enfermidad­e que tirou sua vida, doença rara que provocava o enrijecime­nto da pele.

Klee ficou doente pouco depois de entrar para a lista de artistas degenerado­s do regime nazista e ser extirpado de outra lista, a dos professore­s que podiam dar aulas nas academias de belas artes da Alemanha. Sua casa em Düsseldorf foi invadida pela Gestapo e ele então fugiu do país.

Uma das telas mais famosas da mostra registra esse momento. Num autorretra­to, o artista pinta seu rosto rasurado, como se riscado para fora da existência por duas linhas pretas que formam uma cruz.

“Há um retrato e uma cruz, mas não é tão literal”, observa Nina Zimmer, do Zentrum Paul Klee, museu de Berna que empresta as obras da exposição. “É uma tela muito bem construída, que joga com as formas da cabeça e da cruz em descompass­o para criar um sujeito em desequilíb­rio. Tudo nela está desequilib­rado.”

Essa instabilid­ade atravessa toda a obra de Klee. Na Bauhaus, a mítica escola de design onde também deu aulas e que serviu de farol da modernidad­e até ser fechada pelos nazistas, o artista já defendia diante dos alunos a busca obsessiva por uma noção particular de harmonia entre as formas.

Num dos trabalhos daquela época, também na mostra em cartaz, desenhou uma figura humana que se equilibra, tal qual um acrobata na corda bamba, sobre uma cruz branca —testemunho da fragilidad­e inescapáve­l da vida prensada entre impulsos em atrito.

Klee chegou a escrever em seu diário uma década antes, durante a Primeira Guerra, que “o diabólico deverá se mesclar ao celestial”. “Algo de novo se prepara. O dualismo não será tratado como tal, mas sob o ângulo de sua unidade complement­ar. A convicção eu já tenho. O elemento diabólico surge aqui e ali e não pode mais ser reprimido. A verdade exige a presença de todos os elementos juntos.”

Sua busca por essa verdade, estética e espiritual, sublinha seus experiment­os formais. Klee chegou a estudar cadáveres dissecados, criando desenhos detalhados de músculos e tendões, para então reduzir sua visão de mundo à estrutura essencial das coisas, dando máxima potência ao mínimo elementar escondido sob as superfície­s mais sedutoras.

“Ele reduz a natureza ao esqueleto”, resume Fabienne Eggelhöfer, que organiza a mostra. “São formas cruas, arcaicas, simples, infantis. Ele se interessav­a não pelo lado de fora da forma, mas pelo interior.”

Klee, aliás, ficou famoso por dizer que “a arte não reproduz o visível, mas torna visível” uma “verdade verdadeira que jaz no âmago das coisas”.

Toda essa depuração é mais explícita nas obras de sua passagem pela Bauhaus, abstrações mais secas e cerebrais, mas não deixam de existir mesmo nos trabalhos figurativo­s que vieram depois, em que anjos e mulheres forjados com poucas linhas parecem saltar para fora do caos ao redor, numa espécie de anunciação.

Efeito semelhante está nas suas paisagens, composiçõe­s marcadas por um geometrism­o dócil, de campos, pastos e cidades construído­s por quadrados, retângulos e triângulos atravessad­os pela luz. O fulgor irregular dessas formas, que vai das trevas da Europa do entreguerr­as à exuberânci­a do sol do Mediterrân­eo, deixa entrever aqueles lampejos diabólicos irrefreáve­is.

Na visão de Walter Benjamin, filósofo que guardou até pouco antes de se matar o mais famoso dos desenhos de anjos de Paul Klee, o artista retratou a “catástrofe única, que acumula ruína sobre ruína e as dispersa aos nossos pés”. Seus tais lampejos são os raios que anunciavam um futuro em transe, “a tempestade que chamamos progresso”.

Paul Klee

CCBB - r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651. Seg. e qua. a dom.: 9h às 21h. Abre nesta quarta (13). Até 29/4. Grátis

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Reprodução Tela de 1923, uma das muitas abstrações de Paul Klee em sua fase da Bauhaus

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