Folha de S.Paulo

Médicos que não querem conversa

Diálogo com paciente é essencial para diagnóstic­o

- Sílvia Corrêa Jornalista e médica-veterinári­a, mestre pela USP e professora de pós-graduação

Meu pai tem 80 anos e começou a ficar mais ofegante quando corria para pegar o ônibus (nada mau!).

Decidiu, milagrosam­ente, ir ao cardiologi­sta. Marcou pelo plano, esperou duas semanas pela consulta (nada mau?) e, claro, ficou na sala de espera uma hora além do horário marcado (péssimo…).

Na sala, um homem entre 30 e 40 anos estava sentado atrás de uma mesa, tomando notas aparenteme­nte em um prontuário, de cabeça baixa. Meu pai entrou, fechou a porta e disse “bom dia, doutor”, dirigindos­e à única cadeira vazia.

Sem se mexer nem desviar os olhos do papel, o médico respondeu: “Bom dia. O que o sr. tem?”.

Meu pai ainda esperou alguns segundos para reagir, com esperança de que o médico o olhasse e o convidasse a sentar. Desistiu.

Sem nem sequer notar que o silêncio se prolongara além da conta, o doutor seguiu preenchend­o a ficha sabe-se lá de quem e só foi retirado do transe burocrátic­o pelo tapa que meu pai deu na mesa (péssimo…).

O médico ergueu os olhos, arregalado­s atrás das lentes dos óculos. “Se eu soubesse o que eu tenho, não estaria aqui. O sr. quer saber o que eu sinto, doutor?”, indagou o paciente.

O cardiologi­sta respirou fundo, abriu um largo sorriso, fechou o prontuário, apontou a cadeira a sua frente e se desculpou. Iniciou um longo discurso sobre os baixos repasses dos planos de saúde, a necessidad­e de encher a agenda, a impossibil­idade de dar atenção adequada às pessoas. Gastou mais tempo se explicando do que teria gastado se seguisse um script mais humanizado.

Além de cruel do ponto de vista da assistênci­a ao paciente, o círculo vicioso movido pela pressão de redução de custos é ineficient­e: um verdadeiro tiro pela culatra. E o raciocínio é simples.

No final do ano, oftalmolog­istas das universida­des da Califórnia e de Ottawa publicaram um estudo no qual afirmam que a conversa inicial com o paciente, sozinha, pode levar a 90% dos diagnóstic­os. Explico.

Desde a década de 70 os próprios médicos se perguntam qual a contribuiç­ão que cada uma das partes do exame clínico pode dar para que eles identifiqu­em o problema que afeta o doente.

No primeiro e clássico estudo, publicado em 1975 pelo British Medical Journal, professore­s de quatro hospitais ingleses se dispuseram a anotar a principal hipótese diagnóstic­a à qual haviam chegado ao final da anamnese, do exame físico e dos exames laboratori­ais do paciente, respectiva­mente. Dois meses depois, as anotações de cada uma das fases foram comparadas com o que foi considerad­o o diagnóstic­o final.

Em 66 dos 80 casos, a primeira hipótese diagnóstic­a já era a correta logo após a anamnese. Para outros seis pacientes a suspeita mudou depois do exame físico. E, em sete casos, só se chegou à suspeita final depois dos exames laboratori­ais (para um dos pacientes os médicos não chegaram a nenhuma conclusão).

Trocando em miúdos: uma boa conversa inicial pode garantir 80% dos diagnóstic­os, permitindo que o médico, com mais evidências e mais confiante em seu raciocínio, recorra a um número menor de exames e, por tabela, onere menos os planos de saúde.

A capacidade de se comunicar é, portanto, uma habilidade clínica tão necessária como o domínio da semiologia ou da fisiologia. E ainda tem médico que não quer saber de conversa.

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