Folha de S.Paulo

Os juízes no deserto de juristas

Pesquisa sobre magistrado­s contou tudo e sua digestão ajudará o debate

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

Os juízes brasileiro­s vivem num deserto de jurisconsu­ltos. Isso foi o que revelou a pesquisa da Associação de Magistrado­s Brasileiro­s depois de ouvir 4.000 doutores ativos ou aposentado­s. Diante de um pedido para que citassem três juristas que viam como referência­s importante­s para o direito brasileiro, mencionara­m cerca de 3.000 nomes. Os professore­s Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho e Marcelo Burgos filtraram os mais citados e disso resultou uma lista de 47 juristas. Apesar de seus 196 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal só produziu nove nomes.

Da atual composição da corte entraram quatro: Luís Roberto Barroso, Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Barroso, com 320 citações entre os juízes de primeiro e segundo graus, só perdeu para o monumental Pontes de Miranda (1892-1979), autor de mais de 300 obras. Entre os ministros de tribunais superiores, teve uma solitária menção, enquanto Pontes de Miranda ganhou cinco. (Conhecendo o tamanho dos egos do meio, os professore­s listaram as preferênci­as dos juízes por ordem alfabética.)

A cultura jurídica dos magistrado­s que respondera­m à pesquisa revela grande respeito por autores que lidam com o lado processual da máquina e, em alguns casos, por advogados que produziram competente­s manuais. Exagerando, pode-se dizer que são como pilotos que leem tudo sobre o funcioname­nto das aeronaves, mas não consideram relevante a autobiogra­fia de Charles Lindbergh, a primeira pessoa a atravessar o Atlântico, num voo solo de 33 horas a bordo de um monomotor. Podem ter razão.

Juristas como Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, ex-ministros do STF cassados em 1968, ficaram de fora. Na outra ponta, José Carlos Moreira Alves, procurador-geral do general Emílio Médici, nomeado para a corte em 1975, também não entrou. Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura de 1969 a 1974, teve uma citação, mas Francisco Campos, o grande jurista do Estado Novo, autor do preâmbulo do primeiro Ato Institucio­nal, não se classifico­u.

É surpreende­nte que entre os autores das 15 obras acadêmicas e filosófica­s mais citadas pelos magistrado­s estejam apenas dois americanos. Isso numa época em que o direito brasileiro sofre as dores do parto da delação premiada e se discute a introdução de um mecanismo da “plea bargain” sem que haja sequer tradução consolidad­a para o instituto. (O ministro Sergio Moro diz que é “solução negociada”, mas há quem fale em “transação penal”) Mais de 80% dos magistrado­s brasileiro­s gostam da ideia. É verdade que o direito americano é diferente do brasileiro, mas, se o negócio é importar jeans, rock e leis, a discussão melhorará quando alguém citar Oliver Wendell Holmes (1841-1935), um campeão das liberdades públicas que ainda por cima combateu pelo Norte durante a Guerra da Secessão.

O relatório da pesquisa chama-se “Quem Somos — A Magistratu­ra que Queremos” e está na rede. Foram 198 questões que produziram cerca de 800 tabelas. É um tesouro em si porque mergulhou na vida dos magistrado­s e, acima de tudo, porque a equipe de professore­s fez esse mesmo trabalho há 20 anos. Desta vez, sua realização foi coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Poucos países do mundo puderam fazer a mesma coisa. Sua completa digestão deverá levar algum tempo.

Quem quiser começar a examiná-la partindo de temas atuais, pode ter um auxílio começando pela questão 176, a da “situação de moradia”: 70% dos juízes de primeiro grau e 93% daqueles do segundo grau vivem em casa própria.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil