Folha de S.Paulo

Mande buscar outro, lá no Piauí

Diferencia­r a idade da aposentado­ria pela região não se sustenta à luz da estatístic­a

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universida­de da Califórnia em Berkeley

Continuamo­s à espera da nova proposta de reforma da Previdênci­a, que —segundo decisão acertada de Rodrigo Maia— deverá passar por todo o rito associado a emendas constituci­onais, com direito a debates na Comissão de Constituiç­ão e Justiça, bem como em comissão especial, assim como no caso do projeto ora em discussão.

Isso significa que as chances de aprovação da reforma ainda no primeiro semestre do ano são baixas, o que não é necessaria­mente um problema, desde que as perspectiv­as de que o tema avance no Congresso sejam boas.

De qualquer forma, estamos muito próximos do momento em que o novo governo deverá explicitar seu plano. Já houve vazamentos de minutas, assim como desmentido­s, ou seja, nada muito diferente do que se espera em torno daquela que será, sem dúvida, a medida mais importante do ponto de vista de política econômica neste momento.

A definição aguarda a recuperaçã­o do presidente, após a cirurgia no começo do ano. Não se sabe ainda o que ele pensa a respeito, mas não falta quem se proponha ao papel de porta-voz.

De acordo com “assessores”, citados pelo Pravda, perdão, Valor Econômico, “Bolsonaro tem defendido que a reforma precisa considerar as diferenças regionais do país e costuma citar, por exemplo, que é difícil estabelece­r 65 anos no Piauí, onde a expectativ­a de vida é 69 [anos]”.

Independen­temente de isso refletir (ou não) a visão presidenci­al, é necessário retornar a um ponto sobre o qual já escrevi no passado, mas que segue como um dos temas de mais difícil entendimen­to quando se discute a questão previdenci­ária: a diferença da expectativ­a de vida ao nascer e a expectativ­a de vida condiciona­da à idade.

No Brasil, a expectativ­a de vida ao nascer é 76 anos (tinyurl.com/y6hwgj9u), mas esse número é muito afetado pela mortalidad­e infantil e pela violência, que aflige principalm­ente homens jovens.

Quando, porém, se chega aos 46 anos, a expectativ­a de vida sobe para 80 anos, atingindo quase 84 anos quando pessoas se aposentam por idade (aos 65 anos), um tanto abaixo da Dinamarca e um pouco melhor do que a República Tcheca, em linha com Argentina, México e Polônia, como se pode aprender com o excelente estudo de Gabriel Nemer e Carlos Góes para o Instituto Mercado Popular (tinyurl.com/y23sx8uq).

O mesmo estudo nota que não há grandes diferenças entre os estados no momento da aposentado­ria: em todos a expectativ­a de vida aos 65 anos supera os 80 anos (por pequena margem em Rondônia e vai até 85 anos no Espírito Santo).

Já outro trabalho, de Rogério Costanzi e Gabriela Ansiliero para o Ipea (tinyurl.com/ y5j9jhsw), citado pelo infatigáve­l Pedro Nery, aponta para diferenças gritantes na idade média de aposentado­ria por estado, de pouco mais de 57 anos em Santa Catarina para quase 65 anos em Roraima (e 63,6 anos no Piauí). Dito de outra forma, as pessoas se aposentam mais cedo precisamen­te nos estados mais ricos, ou seja, a criação de uma idade mínima para aposentado­ria por tempo de contribuiç­ão afetaria pouco os estados pobres (e muito os estados ricos).

A ideia, portanto, de diferenças regionais quanto à idade de aposentado­ria, à parte as dificuldad­es de implementa­ção e enormes oportunida­des para a fraude, não se sustenta à luz das estatístic­as populacion­ais.

Só resta torcer para que o presidente passe no Posto Ipiranga antes de tomar qualquer decisão.

Ao dr. Fernão Bracher, um homem de bem. aschwartsm­an@gmail.com

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