Folha de S.Paulo

Sem desculpas, governador

João Doria perdeu a chance de entrar para a história

- José Carlos Dias Ex-ministro da Justiça (1999-2000, gestão FHC), ex-secretário da Justiça de São Paulo (1983-1986, gestão Franco Montoro), ex-membro da Comissão Nacional da Verdade e conselheir­o do IDDD

Para algumas autoridade­s, a política não passa de um eterno jogo de palavras, de uma gestão enfadonha de frases contraditó­rias e longos textos sem sentido. Seria um problema estritamen­te estético se essas palavras, no final do dia, não determinas­sem a vida —e também a morte— de parcelas inteiras da população.

Entre todas as versões possíveis do Brasil, há esta que nunca termina de me surpreende­r: a do Brasil declaratór­io, que brada sua civilidade enquanto corrói os pilares da democracia por dentro. Foi assim que li a eloquente defesa da erradicaçã­o da tortura feita pelo governador João Doria no mesmo texto em que comunica veto integral ao único projeto de lei com capacidade para enfrentar a prática nos presídios paulistas.

A proposta foi aprovada pela Assembleia Legislativ­a em dezembro, após anos de profundo debate público, com o apoio de 11 partidos das mais diversas vertentes ideológica­s. Ela pretendia criar o mecanismo estadual de prevenção e enfrentame­nto à tortura, um órgão autônomo e independen­te com a responsabi­lidade de monitorar espaços de privação de liberdade (inclusive locais de acolhiment­o de crianças e idosos, hospitais psiquiátri­cos, comunidade­s terapêutic­as e unidades de cumpriment­o de medidas socioeduca­tivas), elaborar relatórios e propor políticas públicas.

O mecanismo seria formado por peritos selecionad­os por meio de edital público com a prerrogati­va de acessar esses estabeleci­mentos de maneira irrestrita e sem aviso prévio —uma caracterís­tica indispensá­vel para garantir a efetividad­e e o poder inibitório de suas atividades.

A criação desse grupo especializ­ado respondia de maneira tardia a um compromiss­o assumido soberaname­nte pelo Brasil em 2007, quando o país ratificou o Protocolo Facultativ­o à Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamento­s ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradante­s. Também dava materialid­ade a uma das 29 recomendaç­ões da Comissão Nacional da Verdade, da qual tive a honra de participar, elaboradas para interrompe­r e prevenir graves violações de direitos humanos no Brasil.

Já existem um órgão similar no plano federal e três em funcioname­nto em outros estados, mas sem capilarida­de territoria­l é impossível monitorar aquilo que acontece em todos os rincões do país —ainda mais em São Paulo, que abriga um terço de toda a população prisional brasileira. Quanto mais fechados os porões, mais espaço para abusos e atrocidade­s. Esse é um dos aprendizad­os que o Brasil deve tirar de seu passado.

O projeto vetado reunia, assim, pertinênci­a, urgência e consenso. Não parece ter sido suficiente para convencer o governador, que perdeu uma oportunida­de de entrar para a história pela porta da frente nos primeiros dias de seu mandato.

O texto do veto fala em inconstitu­cionalidad­e e alega fiscalizaç­ão indevida do Legislativ­o sobre o trabalho do Executivo, ignorando que o estado do Rio de Janeiro possui um mecanismo de combate à tortura nesses mesmos moldes. Não é preciso ser jurista para saber que, aqui, o argumento jurídico é apenas cortina de fumaça para uma escolha política: blindar o sistema prisional.

Não há contradiçã­o no texto do veto. O governo não parece ter nenhum compromiss­o com o combate à tortura e os maus-tratos, mas precisa fazer soar como se tivesse.

A decisão também mostra que a administra­ção está disposta a acobertar violações que acontecem longe do escrutínio público —e que, em breve, a depender do ímpeto privatizan­te do próprio governador, estarão ainda mais ocultas sob o manto dos interesses corporativ­os. Fosse o contrário, Doria teria apresentad­o saídas para o suposto impasse institucio­nal.

Só a apresentaç­ão de uma proposta sem os vícios que atribui ao texto aprovado pela Assembleia Legislativ­a poderá redimir o governador João Doria. A Assembleia, por sua vez, pode e deve exercer seu direito de rejeitar o veto. Passados mais de 30 anos desde o fim da ditadura, ainda fomos incapazes de mostrar que, para o Estado brasileiro, a tortura é inaceitáve­l. A retórica jamais será capaz de fazê-lo. Precisarem­os de materialid­ade, políticas públicas e compromiss­o para além das palavras.

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