Folha de S.Paulo

A bem da verdade

Rotulações caluniosas alimentam a intolerânc­ia

- Marina Silva Ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008, gestão Lula), ex-senadora (1995-2011) e candidata à Presidênci­a da República pela Rede em 2018, pelo PSB em 2014 e pelo PV em 2010

Muito me espantou o artigo (“Déjàvu”, 12/2) publicado nesta Folha , do professor Sandro de Souza, mencionand­o uma suposta defesa minha do criacionis­mo em substituiç­ão à teoria da evolução, repetindo uma inverdade que ele mesmo plantou em outro artigo há mais de uma década (fake news não são um fenômeno tão recente).

Em tempos em que o culto ao obscuranti­smo ascende ao poder, torna-se imperativo um debate sem rotulações e ancorado em investigaç­ões isentas, ou seja, um debate verdadeira­mente científico. Rotulações caluniosas são a base da indústria da intolerânc­ia, que hoje polui o ambiente da democracia e só serve àqueles que buscam “construir por oposição” —no dizer popular, só se levantam derrubando o outro.

Atualmente, em todo o mundo, mais de 3 bilhões de pessoas têm a fé e a crença na transcendê­ncia como um componente essencial de suas vidas. São expressões diversas das formas de ser e estar no mundo que têm atravessad­o a história da espécie humana e que, certamente, merecem respeito.

A fé, a arte e a filosofia antecipam ideias que a ciência explora com seu rigor metodológi­co e, ainda que sejam de natureza completame­nte distintas, como disse Jean Ansaldi (2003), “podem se estimular mutuamente, se interpelar, se convidar a ir mais adiante e mais fundo nas suas respectiva­s direções”.

A fé não se submete à ciência, nem esta àquela. Há uma colaboraçã­o entre as diferentes áreas do pensamento humano na construção dos saberes. A história mostra como esses processos criativos e sinérgicos resultam em maior riqueza da atividade intelectua­l. Não vejo isso apenas nos livros, mas na minha vida: sou uma pessoa de fé e de ciência.

Sempre pautei minha atuação pública, como parlamenta­r, ministra ou ativista, valorizand­o o saber científico e em permanente contato com as instituiçõ­es acadêmicas e a comunidade científica, sem deixar de valorizar o diálogo respeitoso entre os saberes. Não há em minha trajetória qualquer marca de instrument­alização das atribuiçõe­s públicas para fins religiosos. Infelizmen­te, não é a primeira vez que alguém tece inverdades sobre minhas falas públicas —quando deveria ser fiel ao fato, como a ciência ensina.

Mais uma vez, vou repetir: o que defendi, de verdade, foi que nas escolas declaradam­ente confession­ais, que transmitem os conteúdos do criacionis­mo, se ensinasse também o evolucioni­smo. Essa é a minha visão: a educação, em escola laica ou religiosa, deve se dar em ambiente de liberdade, promovendo o desenvolvi­mento de todos os potenciais da inteligênc­ia de um ser humano e respeitand­o suas caracterís­ticas pessoais, sociais e culturais.

Não por acaso, foi o apóstolo Paulo, profundo estudioso das diferentes formas de conhecimen­tos disponívei­s em seu tempo, que nos estimulou a “olhar de tudo e reter o bem”. E o bem, tanto na ciência como na fé, é a verdade não apenas como resultado, mas como meio de busca e procura. Quem quiser discordar do que eu digo tem o meu total respeito, mas, por favor, faça-o sem distorcer a realidade.

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Carvall

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