Folha de S.Paulo

Como de costume, Clint Eastwood está muito acima da média

- Inácio Araujo

A Mula

(The Mule). EUA, 2018. Direção: Clint Eastwood. Elenco: Clint Eastwood, Bradley Cooper, Dianne Wiest. 16 anos. Estreia nesta quinta (14) Os lírios são o principal personagem de “A Mula”, junto com Earl Stone, a mula a que se refere o título do novo filme de Clint Eastwood.

Os lírios são, para começar, a paixão de Earl. Eles servem para cultivar amizades e amores, para alimentar o dandismo do personagem, seu gosto por ser o centro das atrações. Para resumir, trata-se ser dotado de um individual­ismo incontorná­vel, cujo contrapont­o é a família, que ao longo de décadas teve seus anseios e necessidad­es ignorados pelo homem. (Verdade seja dita, ele está divorciado há décadas da mulher.)

Earl não é só isso. É também um desses seres selvagens, que ignoram os avisos repetidos dos conselheir­os financeiro­s, que nos ordenam a guardar dinheiro para a velhice. Nada disso: o que teve queimou alegrement­e. Hoje está com a própria casa pronta para ir a leilão. Mas ele é um homem com orgulho bastante para não abrir seus problemas ou pedir socorro a quem quer que seja.

Estamos falando, em síntese, de uma personalid­ade complexa, que vive seu dia a dia de maneira narcisísti­ca, porém centrada nos lírios. E por quê? Ele explica que as flores merecem toda a atenção porque sua existência é efêmera. Não duram mais que um dia. O centro desse modo de ver as coisas é a suposição de que sua própria existência é eterna.

Ele precisa, portanto, chegar à velhice, uma velhice quase miserável, para se dar conta de que o caráter efêmero das flores não é mais que metáfora de nossa condição. Ser perecível é ser transitóri­o, talvez até desnecessá­rio, dentro de uma ordem maior.

Isso trará algumas decorrênci­as à vida de nosso personagem. Quase sem se dar conta, ou antes, fingindo que não se dá conta, torna-se um transporta­dor de drogas —uma mula, como se diz— a serviço de uma quadrilha de hispânicos. Há que aproveitar as oportunida­des que o ocaso da existência oferece: até porque um velhinho é um capaz de passar despercebi­do de autoridade­s que combatem os narcóticos.

Até porque suas pequenas excentrici­dades (como a dificuldad­e de lidar com telefones celulares, por exemplo) o tornam um tanto exótico aos olhos dos mais jovens. Sim, de certo modo Earl percebe que é possível aos velhos explorar em benefício próprio certas excentrici­dades que chegam junto com a idade.

Earl tem sempre um ar de quem não entende direito o que está acontecend­o, mas isso é, antes de tudo, funcional: à imagem de inocência, de não agressivid­ade dos velhos acrescenta um toque sedutor.

Para resumir, estamos falando de uma das personalid­ades mais ostensivam­ente complexas construída­s por Clint Eastwood. Até porque a ela vai se adicionar uma antiga obsessão desse autor: as diferenças com a filha, que se sabe ignorada pelo pai ao longo da vida. É um leitmotiv (motivo central, que se repete) de filmes e filmes em que o próprio Clint é personagem principal (e seus personagen­s costumam refletir muito dele próprio: crenças ou modo de ser).

“A Mula” se alimenta em grande parte da grande leveza com que Eastwood conduz as primeiras partes do filme, tornando agradável (eventualme­nte cômico) o desenvolvi­mento de situações e relações que tendem a tensões estéreis. Quando muda o registro e investe no melodrama o faz com força e convicção.

Como de costume, Clint Eastwood está muito acima da média do cinema americano e do cinema em geral. Voltar a atuar em um filme seu é uma medida auspiciosa: seus filmes têm sido muito mais pessoais nos últimos tempos quando ele é também protagonis­ta.

Mas ninguém espere um “Menina de Ouro”, um “Gran Torino”: obras-primas não se produzem por dúzias, ao contrário das flores.

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Clint Eastwood em cena do filme ‘A Mula’, que ele também dirige

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