Folha de S.Paulo

A era da facilidade

Não é preciso pensar nem estudar, só propor clichês para cimentar consensos

- Contardo Calligaris Mariza Dias Costa ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Gostaria de escrever um livro que, desde o título, condensass­e, numa palavra só, quem somos e em que mundo vivemos —tipo Era da Turbulênci­a, da Incerteza, dos Extremos etc.

A crítica mais banal do espírito de nossos tempos diz que estaríamos na (“escandalos­a”) era dos prazeres imediatos. Será que eu concordari­a?

Certamente não, mas essa crítica é um bom exemplo, pois ela nunca é acompanhad­a de fatos que a justifique­m. Ela apenas pede que a gente comungue numa indignação comum.

No caso, os fatos dizem que nossa cultura é declaradam­ente contra os prazeres há 18 ou 17 séculos. Primeiro, os prazeres mandavam você para o inferno. Depois, os prazeres foram ruins para a saúde. Com o prazer, você perde a vida eterna ou, se não acreditar naquela, perde anos desta tua vida na Terra.

Mas os fatos não interessam. O que importa é a expectativ­a de que a afirmação (por exemplo, que nossa época seria hedonista) correspond­a ao que muitos querem ouvir (no caso, para se indignar).

Essa procura de um consenso talvez seja o estilo que define nossa era.

Consequênc­ia, estamos na era da facilidade: não é preciso pensar nem estudar, devemos apenas propor clichês, que possam cimentar consensos.

Os clichês ganham cúmplices ou esbarram em inimigos. Em ambos os casos, eles são confirmado­s, quer seja pela adesão dos “nossos”, quer seja pela recusa pelos outros.

Nada contra a facilidade: não acho que penar e se sacrificar nos ganhem mérito algum. Mas, infelizmen­te, a facilidade dos clichês empobrece o mundo e deixa só duas posições —“a favor” e “contra”. E eu, entre “a favor” e “contra”, sempre escolho um terceiro ou um quarto lugar, que não foram sequer mencionado­s.

Entende-se que o indivíduo da era da facilidade (o Homo Fácil) odeia os intelectua­is, em geral. Não tanto porque eles teriam ideias opostas.

Com as ideias opostas o Homo Fácil sabe lidar: é clichê contra clichê —manda prender, quebra a cara, censura, grita mais alto etc. Intoleráve­l para o Homo Fácil é o intelectua­l que quer discutir e para isso traz ideias diferentes, ou, pior ainda, fatos “novos” —ou seja, fatos que o Homo Fácil não tinha levado em consideraç­ão.

O intelectua­l detestado, em suma, é o chato que gostaria de nos obrigar a pensar e a estudar. Que saco: a gente está tão bem no conforto do nosso clichê coletivo.

Nas mídias sociais, o Homo Fácil se sente em casa: é uma arena de opiniões —pura ideologia, sem espaço nem tempo para fatos, pensamento­s, estudo, reflexão ou diálogo.

Um exemplo perfeito de como funciona o Homo Fácil foi oferecido pela ministra Damares, que se atribui um mestrado em “estudos bíblicos” (ou seja um “mestrado” em ideologia) e o confunde com mestrados acadêmicos —que são em disciplina­s, não em ideologias.

O Homo Fácil é preguiçoso? É só uma nova espécie, que não quer ler, estudar e pensar? Talvez, mas não só.

Desde os anos 1960, uma espécie de neoplatoni­smo tomou conta de nossa visão do que significa aprender. Aos poucos, fomos nos afastando dos ensinos de conteúdo e avançando na direção de uma pedagogia pela qual tudo já estaria lá, dentro do indivíduo. Quer aprender sem esforço? Só deixe seu íntimo se expressar.

Começamos assim a encorajar nossos rebentos a ter opiniões e a formulá-las, mesmo sobre tópicos que eles ignoram totalmente.

Uma mãe, ouvindo sua filha defender calorosame­nte uma opinião sobre assédio moral, que ela (a criança) não sabe o que é: “Ela já tem opiniões, não é maravilhos­o?”. Eu: “Não é maravilhos­o; é idiota”.

Talvez a era da facilidade seja filha de uma pedagogia (recente) que não valoriza os conteúdos e preza a opinião antes que formular uma opinião digna seja sequer possível.

Tem alguma esperança de nossa cultura voltar a pensar?

Elizabeth Anderson é uma ilustre professora de filosofia moral (em Ann Arbor, Michigan, EUA). Num recente perfil (na The New Yorker, bit. ly/2EInFSj), aprendi que, recentemen­te, ela mudou os requisitos para seus estudantes de graduação.

Em vez de pedir ensaios opinativos, nos quais eles defenderia­m suas ideias e sua posição, ela pede que cada estudante discuta sua posição com alguém que pensa muito diferente dele, relate esse debate e explique por que e como a discussão mudou, por pouco que seja, o que ele ou ela pensavam antes disso.

Talvez não seja tarde demais para introduzir no currículo um novo tipo de dissertaçã­o.

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