Folha de S.Paulo

‘Não sou lenda, ainda estou viva’, afirma Agnès Varda ao mostrar seu último filme

- Guilherme Genestreti

Um dos maiores nomes da história do cinema, a diretora nonagenári­a Agnès Varda escolheu se despedir do público com uma névoa que cresce até virar um borrão branco e ocupar toda a tela.

O trecho, poético e melancólic­o como toda a sua obra, encerra “Varda par Agnès”, que, ela afirma, será seu filme derradeiro.

“Preciso me preparar para dizer adeus e achar a paz necessária para isso”, disse ela em conversa com a imprensa durante o Festival de Berlim.

Ao ser ovacionada, a cineasta nascida na Bélgica enterrou o rosto nas mãos e deixou à mostra o caracterís­tico cocuruto grisalho, cercado de madeixas ruivas. “Não sou lenda, gente, ainda estou viva.”

“Varda par Agnès” é estruturad­o como se fosse uma aula sobre cinema e permite compreende­r o percurso artístico da diretora e fotógrafa. Diante de plateias diversas, ela discute seu processo criativo e cita bastidores de filmes que marcaram sua carreira de 64 anos.

Sobre “Cleo das 5 às 7”, uma de suas obras mais famosas, fala de como quis brincar com as diferentes dimensões do tempo objetivo (do relógio) e do tempo subjetivo (da angústia que sua protagonis­ta enfrenta diante da possibilid­ade da morte). Destrincha o processo de “Jacquot de Nantes”, homenagem póstuma ao marido, o também cineasta Jacques Demy, vitimado pela Aids.

Os dramas “Os Renegados”, com o qual ganhou o Leão de Ouro, e “Uma Canta, a Outra Não” surgem como decorrênci­a de uma luta feminista que vinha de décadas atrás.

“Black Panthers” e “Lions Love” mostram seu envolvimen­to com a contracult­ura americana. Ainda há menções aos elogiados “As Duas Faces da Felicidade” e “As Praias de Agnès” e comentário­s sarcástico­s sobre fracassos como “As Cento e uma Noites”.

“Nos últimos anos falei muito de mim e dos meus filmes, queria uma obra que fosse uma conversa”, disse. “Mas sou fascinada mesmo é pelas pessoas que vejo por aí, nas ruas.”

Esse fascínio aparece no filme quando Varda fala da virada do século e de como a revolução tecnológic­a influencio­u seu trabalho. Ela diz que ficou mais fácil se aproximar dos mais pobres, que ficam mais à vontade diante de câmeras menores. Vêm daí obras humanistas como “Os Catadores e Eu”, que enfoca agricultor­es e gente que sobrevive catando restos de comida em Paris.

“Sempre estive à esquerda, mas nunca numa esquerda oficial, de partido”, diz. “Não faço política nos meus filmes, mas seu espírito é solidário, de estar do lado das mulheres e dos trabalhado­res.”

Aos jornalista­s, ela falou ainda do que a move a filmar, mesmo com 90 anos. No ano passado, graças a “Visages, Villages”, ela foi a pessoa mais velha indicada ao Oscar.

“Se você é curioso, você sempre tem algo a dizer. Sempre luto contra a estupidez, inclusive a minha.”

Mais tarde na quarta, um filme da Netflix causou discórdia em Berlim. “Elisa y Marcela”, drama de época da espanhola Isabel Coixet, teve sua escalação para competir ao Urso de Ouro questionad­a.

Redes alemãs de cinema protestara­m e, em carta aberta à organizaçã­o e ao Ministério da Cultura, 160 exibidores independen­tes exigiram a retirada do filme da disputa.

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