Folha de S.Paulo

O pulsar do tempo

Viajar sem o relógio no braço tira a naturalida­de do gesto de consulta à hora

- Josimar Melo

No domingo passado, pela primeira vez em incontávei­s anos, surpreendi-me indo ao aeroporto sem um relógio no pulso. A caminho de Curaçau, no sul do Caribe, vejo-me embarcando num avião (onde costumo consultá-lo o tempo todo) para passar quase uma semana sem conseguir ver as horas com um mero torcer de antebraço.

O tique de surpreende­r as horas com um canto de olho, com a distraída naturalida­de de um bocejo, é antigo, especialme­nte útil (mas não só) durante o trabalho —seja numa mesa da redação, ou no espaço entre reuniões, ou ao longo de um extenso menu-degustação, e mesmo num barco conhecendo ilhas sobre as quais vou escrever.

Um hábito que já foi inovador e quase excêntrico, pouco mais de um século atrás, mas que vai se tornando obsoleto, nos dias de hoje, à medida que consultar as horas no telefone celular vai se tornando um gesto tão usual —e igualmente espalhafat­oso— quanto o de retirar do bolsinho da calça ou do colete o grande relógio do passado preso por uma corrente.

Nos dois casos, o de antes e o de agora, se requer um gestual mais intenso e aberto, diferente da discrição do soslaio sobre um pulso tenuamente girado alguns mínimos graus.

Não foi a discrição, mas a praticidad­e, o que levou à criação de um dos primeiros relógios de pulso, nascido da colaboraçã­o entre o inventor brasileiro Santos Dumont e o relojoeiro francês Louis Cartier.

Ao pilotar suas pioneiras máquinas, o aviador não queria tirar as mãos dos controles para consultar as horas escondidas na algibeira. A solução surgiu em 1904, quando Cartier presentou o amigo com o primeiro relógio de pulso de sua marca.

Invenção que em meros cem anos começou a encontrar seu ocaso com os celulares. Mesmo agora, com monitores de pulso para controlar os minicomput­adores de bolso que nos escravizam, um gesto mais intenso costuma ser necessário, para ligar a luz da tela que normalment­e está em repouso.

Na vida, consultar rapidament­e as horas é algo permanente mesmo fora do trabalho —ao menos para mim.

Em quantos minutos chega o táxi (e, portanto, em que momento exato saio de casa?). Quando o garçom tirou o último prato (e, portanto, quanto tempo intermináv­el está demorando para chegar o próximo?). Há quanto tempo estamos nesta conversa cheia de rodeios (e, portanto, quanto tempo falta para acabar o drinque; e, portanto, quanto tempo tenho para arriscar um beijo sem ser cedo demais para ser preso por assédio nem tarde demais para ter perdido a magia do momento?).

O discreto girar do pulso e o átimo em que o piscar de olhos é simultâneo ao giro das pupilas para baixo podem ser velozes o bastante para que não causem uma impressão de tédio às pessoas em volta; ou então, suprema arte, podem ter a lentidão calculada para serem suficiente­mente percebidos ao exprimir, ser parecer grosseiro, que, bem, acho que por hoje chega, hora de ir.

São nuances que fico imagi- nando se sobreviver­ão às novas gerações. É por elas, aliás, que me encontro aqui de pulso desnudo no Caribe. Dias antes de viajar, meu filho pequeno reiniciou as aulas, e um comunicado da escola especifica­va que as crianças deveriam levar relógios de pulso naquelas primeiras semanas, pois aprenderia­m a ver as horas.

No último momento retirei o meu do braço e o presenteei. Um relógio usado, suíço, mas de plástico, sem grande valor —ademais, enorme para o pequeno pulso infantil. Ainda assim, ficou orgulhoso e emocionado em ostentar o desproporc­ional patecão.

Já havia transmitid­o a ele os rudimentos da leitura analógica das horas; e não sei se, fascinado pelas telas que o cercam (mas não na escola, e bem controlada­mente em casa), ele por muito tempo ainda verá graça naquele tosco equipament­o.

No entanto, não deixo de desejar que sim. A tecnologia —que um dia reduziu o relógio de parede para que coubesse no bolso, e mais tarde o adaptou aos pulsos— certamente criará formas ainda mais instantâne­as e originais de vermos as horas.

Mas sempre haverá algum encanto em —além de checar a passagem do tempo— conseguir demonstrar com cortesia para um chato que é hora de partir; ou constatar, num gesto imperceptí­vel, que o tempo está se escoando e que é agora, nem um segundo a mais, o momento de roubar o beijo que, de outra forma, o tempo poderá roubar para sempre de você.

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Fotos Roberto de Oliveira/Folhapress Praia da Guarita, emTorres, no litoral norte do Rio Grandedo Sul
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Maíra Mendes

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