Folha de S.Paulo

O bobo da corte

A pior coisa que pode acontecer a um artista é virar entretenim­ento de rico

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Em um dos filmes mais interessan­tes dos irmãos Coen, “Inside Llewyn Davis” (“Balada de um homem comum”, de 2013), o protagonis­ta, interpreta­do por Oscar Isaac, é um cantor e compositor tão talentoso quanto miserável. Sem ter onde dormir, ele acaba passando algumas noites na casa de um conhecido bem de vida que, num certo jantar, pede que Llewyn entretenha os anfitriões e convidados com a sua música. Puto da vida, o personagem se recusa e vai embora. Não é porque ele é pobre (e precisa filar uma boia) que vai agradar os mais abonados quando não está a fim, certo? (Não sei. Depois ele volta com o rabinho entre as pernas.) Essa cena me lembrou uma entrevista do Hemingway que li há muito tempo. Nela, o autor dizia que a pior coisa que pode acontecer a um artista é virar entretenim­ento de rico. Todos os dias eu preciso me lembrar dessa frase, porque, confesso aqui, essa boba da corte já se deslumbrou com muito castelo.

Nos anos em que trabalhei como redatora publicitár­ia, seria mais correto que em meu holerite viesse escrito “animadora de circo”. O cliente, filho do dono da empresa, era muito poderoso. Meu chefe, filho do dono da agência, era muito rico. Já meu estagiário, neto do dono da empresa e namorado da filha do dono da agência, em breve se tornaria ainda mais milionário que todos eles. O desfile de mulheres de beleza e elegância impecáveis era constante. Já eu, nem rica nem com sobrenome e muito menos refinada, era convidada a participar do clã única e exclusivam­ente por ser piadista. E, para tal, era bom que eu fosse espirituos­a das oito da manhã até as duas da manhã do dia seguinte. E continuass­e assim nos almoços e nos intervalos para fazer xixi e nas muitas madrugadas passadas trabalhand­o. Eu era tão jocosa que precisava chorar quando chegava em casa, acho que para equilibrar o cosmos.

Nessa época, eu andava com uma garota chamada Marcela. Às vezes, ela aparecia na quitinete onde eu morava e ordenava: “Tô precisando rir”. Olhava pra mim com aquela cara de quem está sendo submetida a algo inferior mas mantém um leve sorriso no rosto pois a mãe lhe deu educação. Era o mesmo sorrisinho “sou humana pacas” que ela usava pra dar bom-dia ao porteiro. Uma vez a peguei observando minha gaveta de talheres como quem encara a aventura de um safári. Marcela não era boa pessoa, mas tinha a casa na praia mais maravilhos­a que eu já tinha visto em toda a minha vida. Sua família sentava-se em torno de mim e, sem disfarçar, esperava pelo meu show. “Aquela amiga doida da Marcela vem!” Eu era obrigada a ser patética por todo o feriado prolongado e voltava para São Paulo mais rouca e esgotada do que bronzeada.

Certa feita, a propósito de comemorar o aniversári­o, Marcela alugou um espaço portentoso na avenida Brasil e nos mandou um convite com a indicação: “traje social fino, traga pacotes de feijão”. A festa estava chatérrima (e eu há umas quatro horas no papel de alívio cômico) quando, de repente, várias crianças carentes, vestidas com a camiseta do evento, entraram cantando parabéns e dançando (enquanto todos se sentavam, comiam e parabeniza­vam a iniciativa: “Nossa, ela é muito gente!”).

Nesse dia, entendi que, no meu caso, servir de figuração para os ricos era deslumbram­ento, inexperiên­cia e estupidez. Mas, para aquelas crianças, era uma cena tão triste quanto impecavelm­ente normatizad­a —e eu não tinha nada a ver com aquele mundo. Às custas daqueles meninos, me tornei um ser humano um tantinho melhor.

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