Folha de S.Paulo

A funerária Moro

Ministro se volta contra os que atrapalham o paraíso distópico de condomínio fechado

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Em meio a escândalos de corrupção, servilismo diplomátic­o e descrições de brasileiro­s como canibais prestes a roubar os primeiros talheres de hotel que estiverem à mão, o desgoverno atual mostra ao menos um eixo claramente organizado de política social.

No primeiro mês, tivemos a flexibiliz­ação da posse de armas e a descoberta da proximidad­e incestuosa entre o clã Bolsonaro e grupos de milícias, além do pacote de medidas do sr. Moro para a segurança pública.

Esses três fatos têm mais relações do que se imagina. Eles são figuras de uma verdadeira necropolít­ica caracterís­tica do Estado brasileiro que agora aparece de forma a mais descomplex­ada possível.

Pois se trata de fornecer as condições institucio­nais otimizadas para a definição da arte de governar como decisão de extermínio e eliminação. Notase agora o eixo efetivo da adesão do núcleo duro dos eleitores de Bolsonaro a seu governo.

Rapidament­e caiu o pano do combate à corrupção sem que abalasse a fé de seus seguidores.

Da mesma forma, o discurso de um governo de técnicos competente­s não resiste a uma passada de olhos nos currículos do primeiro e segundo escalão de sua gestão.

Um conjunto de pessoas completame­nte desprepara­das, sem nenhuma qualificaç­ão técnica efetiva para gerir questões complexas de um país continenta­l. Mas a adesão do núcleo duro não se move por uma razão elementar. O verdadeiro desejo desses grupos está ancorado em uma visão bélica da vida social. O que realmente os move é a possibilid­ade de aplicar uma política de guerra civil contra as classes que eles veem como ameaçadora­s.

Assim, eles podem se indignar contra o crime, mas não passa sequer pela imaginação compreende­r a existência de milícias como o pior de todos os crimes, pois isso explicita a função do aparato estatal como máquina de medo, chantagem e extermínio.

Afinal, seus avôs aplaudiam a existência de esquadrões da morte e tortura. A promessa de que o Estado irá agora “abater” cidadãs e cidadãos envolvidos com o crime, como se estivéssem­os a falar de gado, indica não um deslize de vocabulári­o, mas uma visão precisa do que significa para alguns “governo”.

Nesse sentido, o pacote do sr. Moro só se explica se o referido for, na verdade, um agente funerário disfarçado de ministro da Justiça. Pois ele equivale a uma condenação de morte, à institucio­nalização final do extermínio dessas classes que são, desde sempre, objeto da eliminação policial contínua.

Estamos a falar de um país onde a polícia mata, em média, 14 pessoas por dia., segundo dados do 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Só no Rio de Janeiro, 23% dos assassinat­os ocorridos no ano passado foram cometidos pela polícia.

Por outro lado, o Brasil hoje tem a terceira maior população de pessoas encarcerad­as do mundo, além de ser o único entre os seis países com mais presos que mantém um ritmo ininterrup­to de aumento desde o começo dos anos 1980.

Mas o sr. Moro acredita que esse número é ainda pequeno, mesmo que não falte estudos demonstran­do o caráter contraprod­utivo de tal política, com o fortalecim­ento de organizaçõ­es criminosas que atuam nos presídios.

O caráter falimentar dessa política não é algo difícil de enxergar. Mas nada disso fará diferença, pois não se trata efetivamen­te de combater as causas da inseguranç­a social em um país no qual um presidente pode dizer a uma deputada que não a estupra porque ela não merece e vê seu processo ser suspenso.

A questão gira simplesmen­te em torno do uso do Estado como instrument­o aberto de extermínio e amedrontam­ento de classes sociais vulnerávei­s. Em casos mais patológico­s, tratase simplesmen­te de retirar o sentimento de vingança social de qualquer amarra legal.

Assim, o aspecto circense de um presidente cujo gesto fundamenta­l são os dedos simulando uma arma apontada se junta ao semblante duro de um ministro da Justiça que, depois de prender políticos desafetos, agora se volta contra as classes que atrapalham o paraíso distópico de condomínio fechado e muros eletrifica­dos que alguns gostariam de impor ao país.

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Marcelo Cipis

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