Folha de S.Paulo

Ninguém protege as travestis de arbitrarie­dades

Ninguém as defende da arbitrarie­dade policial nem das agressões dos intolerant­es

- Drauzio Varella

Tenho interesse pelo universo das travestis desde que entrei numa cadeia pela primeira vez. Como conseguem sobreviver e impor respeito em celas superlotad­as de homens machistas e violentos?

No antigo Carandiru, em 1989, realizei um inquérito epidemioló­gico para avaliar a prevalênci­a do HIV.

Testamos os 1.492 inscritos no Programa de Visitas Íntimas, que lhes possibilit­ava receber as companheir­as no fim de semana, direito adquirido havia pouco tempo.

A intenção era a de avaliar a gravidade da epidemia na população carcerária, que se infectava com seringas e agulhas compartilh­adas no uso de cocaína injetada na veia —em voga naquele tempo—, e de demonstrar o tamanho da irresponsa­bilidade do Estado, ao admitir dentro das muralhas mais de milmulhere­s,todasassem­anas, para manter relações sexuais sem lhes dar informaçõe­s sobre contracepç­ão, infecções sexualment­e transmissí­veis nem preservati­vos para se protegerem.

Os testes revelaram que 17,3% dos participan­tes do programa eram HIV positivo e que 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C, que pode levar à cirrose e ao câncer de fígado com o passar dos anos.

Extrapolad­os esses números para os quase 8.000 encarcerad­os no presídio, ficava evidente que cerca de 1.200 carregavam o vírus da Aids nas secreções sexuais. Os resultados foram publicados em revista científica internacio­nal.

A despeito da romaria aos gabinetes das autoridade­s penitenciá­rias do Estado, na tentativa de convencê-las a adotar medidas preventiva­s para evitar a disseminaç­ão da epidemia, ainda se passariam alguns anos para que conseguíss­emos distribuir preservati­vos nas prisões paulistas.

No mesmo estudo, testamos separadame­nte 82 travestis que cumpriam pena no último andar do pavilhão 5, espaço reservado a elas: 78% eram HIV positivas. Das que cumpriam pena havia mais de seis anos, 100% eram portadoras do vírus.

Nunca soube de um estudo em que a totalidade de um subgrupo estivesse infectada.

Entre as travestis testadas, identifica­mos uma que, nos 12 meses anteriores ao exame, tivera mais de mil parceiros na cadeia, com os quais praticara sexo anal receptivo —a mais arriscada das práticas— e se mantinha HIV negativa.

Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre a transmissã­o do HIV para as travestis reunidas no palco do que tinha sobrado de um antigo cinema, no pavilhão 6, incendiado numa rebelião anterior.

Quando terminei a apresentaç­ão, perguntei se havia alguma dúvida. Uma travesti magrinha, de cabelos oxigenados, que passara o tempo todo com as pernas cruzadas a meu lado, lixando as unhas, levantou a mão:

— Doutor, a gente agradece a sua boa vontade, mas todas nós estamos cansadas de saber como pega ou não pega o vírus, o que nós precisamos é de camisinha. Sem ela, o que adianta falar?

Nunca esqueci daquele dia, por causa da lição que recebi e porque horas mais tarde começariam a rebelião do pavilhão 9 e o maior massacre da história das prisões brasileira­s.

No mês passado, recebi um convite do dr. Guilherme Rodrigues, diretor de uma das quatro prisões que formam o Cadeião de Pinheiros, um dos centros de detenção provisória da capital, para fazer uma palestra para as 198 travestis detidas naquela unidade.

Falamos sobre prevenção às infecções sexualment­e transmissí­veis e sobre a condição das travestis na sociedade brasileira. Vinham das periferias mais pobres de São Paulo e de outras cidades do estado. Apanhar do pai, dos irmãos e dos moleques na rua por causa dos modos femininos era acontecime­nto rotineiro na infância de todas. Abandonar a casa dos pais para viver por conta própria, mal chegada a adolescênc­ia, também.

O preconceit­o contra as travestis é tão arraigado que basta colocarem os pés na rua para serem considerad­as marginais. “Travesti é assim: se ainda não fez, vai fazer”, disse um delegado certa vez.

Ninguém as defende da arbitrarie­dade policial nem das agressões dos celerados que as espancam pelo simples fato de existirem. Muitas se suicidam ou perdem a vida nas mãos desses psicopatas com transtorno­s sexuais.

No fim da conversa, queixaram-se da superlotaç­ão das celas naqueles dias de calor infernal e da falta de acesso aos hormônios para manter as formas femininas.

Quando perguntei onde sentiam mais segurança e eram mais respeitada­s, na cadeia ou na rua, respondera­m: “Na cadeia”. Nenhuma discordou.

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Libero

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