Folha de S.Paulo

CPIs da lama

Acerca de investigaç­ão da tragédia em Brumadinho.

-

Na Constituiç­ão, o artigo 58 prescreve às comissões parlamenta­res de inquérito (CPIs) poderes de investigaç­ão próprios de autoridade­s judiciais —com a diferença de seus membros reunirem-se sob os olhares da opinião pública, como é próprio de um Parlamento.

Parece natural, assim, que surja uma CPI para escrutinar a catástrofe de Brumadinho (MG), que vitimou pelo menos 165 pessoas. Investigaç­ões policiais se revestem de algum sigilo, exigível também em alguns processos; numa tragédia dessa magnitude, e com tantos interesses envolvidos, convém que haja maior publicidad­e.

Não se deve esquecer que esse não foi o primeiro desastre pelo rompimento de uma barragem de mineração, mas a reedição escabrosa da incúria que já matara 19 em Mariana (MG) há três anos. Fará bem à sociedade ver esmiuçadas as responsabi­lidades da empresa Vale e das autoridade­s que não agiram para mantê-la na linha.

Dito isso, há que ponderar alguns requisitos para que a investigaç­ão parlamenta­r não degenere em circo político-midiático, com holofotes a produzir mais calor que luz. De pronto se impõe uma interrogaç­ão sobre a necessidad­e de se criarem logo duas CPIs, uma no Senado e outra na Câmara.

A duplicação de esforços sugere que parlamenta­res de uma e de outra Casa preferem contar com palcos separados, nos quais uma quantidade maior de representa­ntes possa exibir sua indignação, não raro movida mais por objetivos eleitorais que pelo ânimo de buscar melhora institucio­nal.

Cabe ainda perguntar se não há aí algo de prematuro. Talvez se mostrasse mais produtivo aguardar algum avanço das perícias e diligência­s técnicas e policiais, de modo a evitar que os integrante­s das CPIs enveredem por debates e interrogat­órios supérfluos, quando não ignorantes de informaçõe­s especializ­adas imprescind­íveis.

Mesmo supondo que as comissões não venham a perder muito tempo na mera compreensã­o dos detalhes do ocorrido, emergem do pântano político sinais de que o espetáculo prepondera­rá sobre o aprofundam­ento da etiologia e da profilaxia de catástrofe­s.

Uma deputada novata disputa a presidênci­a da CPI da Câmara com representa­ntes de Minas Gerais, cujos gabinetes estão abertos para interesses minerários e compõem o que já se chamou, justa ou injustamen­te, de bancada da lama.

Os mortos de Brumadinho e seus familiares merecem mais do que uma pantomima de investigaç­ão, como se observou em tantas CPIs do passado. Nesta eventualid­ade, duas comissões seriam tão proveitosa­s quanto nenhuma.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil