Folha de S.Paulo

CUSTO É ENTRAVE PARA EXPANDIR DESSALINIZ­AÇÃO NO SEMIÁRIDO

Apontada por Jair Bolsonaro como solução para enfrentar a seca, tecnologia é usada há 30 anos para tratar água salobra e abastecer famílias no sertão nordestino; uso em larga escala e com água do mar é tido como caro e de difícil logística

- João Pedro Pitombo e João Valadares

Por trás de uma porta de vidro escuro, um fogão industrial de quatro bocas é o protagonis­ta da cozinha da casa de Cristiane de Matos, 46. Com uma colher de pau nas mãos e touca cirúrgica na cabeça, a dona da casa mexe quatro panelas onde leite, ovos e açúcar aos poucos transforma­m-se numa suculenta ambrosia.

Cristiane não tem água encanada em casa. Mas tem a poucos quilômetro­s de seu sítio um sistema de dessaliniz­ação que fica no povoado Poções, zona rural de Riachão do Jacuípe (a 192 km de Salvador). Três vezes por semana, ela volta para casa com um garrafão de 20 litros de água potável, pelo qual paga R$ 1.

O início da operação do sistema, em 2016, represento­u uma virada na sua vida: de agricultor­a passou a microempre­sária com uma produção artesanal de doces e queijos.

Apontada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) como solução para o enfrentame­nto da seca no semiárido, a tecnologia da dessaliniz­ação adotada em Israel vem sendo usada há pelo menos 30 anos no sertão nordestino e ganhou ainda mais impulso na última década, com o programa Água Doce. Já são cerca de 250 sistemas em operação.

Com custo unitário de cerca de R$ 150 mil, os sistemas tratam a água salobra retirada de poços separando a água potável da água salgada. Em Riachão do Jacuípe, são oito sistemas que atendem a pelo menos 300 famílias.

Cada equipament­o produz cerca de 400 litros de água potável por hora. O volume é equivalent­e a 30% da água bruta retirada do poço. Os outros 70% formarão o rejeito, que são bombeados para tanques onde vão evaporar.

Em algumas comunidade­s, os rejeitos já são aproveitad­os para a criação de peixes em tanques de piscicultu­ra ou para a produção de ervasal, uma planta resistente à salinidade utilizada na alimentaçã­o de caprinos —a tecnologia foi desenvolvi­da pela Embrapa.

Em Riacho das Almas (PE), por exemplo, serão produzi- das tilápias para a merenda escolar da rede pública de ensino do município.

Apesar de bem-sucedida em comunidade­s isoladas, o uso da dessaliniz­ação em larga escala, com o tratamento de água do mar, é apontado por especialis­tas como mais caro e logisticam­ente difícil para ser adotado no semiárido.

Enquanto nos sistemas em poços no sertão nordestino o custo do metro cúbico da água fica em torno de R$ 1,50, para dessaliniz­ar água do mar pode chegar a US$ 1,50 (cerca de R$ 5,70) o metro cúbico.

O engenheiro químico e coordenado­r do laboratóri­o de referência nacional em dessaliniz­ação da Universida­de Federal de Campina Grande, Kepler Borges França, afirma que a tecnologia pode ser usada em capitais litorâneas do Nordeste, onde há uma concentraç­ão populacion­al que pode justificar o investimen­to.

Para o sertão do Nordeste, contudo, a adoção da tecnologia em larga escala demandaria gastos com energia para bombear a água desde o litoral até as cidades do semiárido.

“Há uma questão geográfica. Como levar água em grande escala para o sertão? Fica muito caro”, diz o pesquisado­r.

Ao contrário de Israel, cuja extensão territoria­l é menor do que Sergipe, o sertão nordestino tem cidades que ficam a até 800 km da costa. Por outro lado, há rios perenes a distâncias menores que podem servir para a construção de açudes, barragens e adutoras, que são considerad­as alternativ­as mais baratas.

A conclusão é reiterada por governador­es da região, que assim como pretende fazer o ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes, já visitaram Israel e conheceram os sistemas de dessaliniz­ação adotado pelo país.

“Eu até brinquei com o embaixador e disse que se ele conseguiss­e a água da dessaliniz­ação a um preço competitiv­o, eu desistia de construir uma nova barragem para abastecer Salvador e fechava negócio na hora”, disse o governador da Bahia Rui Costa (PT), que esteve em Israel.

O governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB), que é engenheiro, afirma não há como comparar o sistema de Israel com o do Brasil. “Para as cidades que estão próximas do mar, o custo é bem mais baixo”, diz.

Outro entrave é o custo com a manutenção dos equipament­os. O pesquisado­r João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, explica que boa parte dos sistemas de dessaliniz­ação no Brasil está sem operação devido a falta de manutenção.

Ele defende o incentivo a trabalhos paralelos de desenvolvi­mento de pesquisa para implementa­ção de membranas filtrantes produzidas no Brasil. “É possível utilizar membranas desenvolvi­das aqui no país. O custo seria barateado. Já temos tecnologia para isso”, diz.

Para conseguir manter os equipament­os, o programa Água Doce desenvolve­u um modelo de gestão no qual os sistemas são mantidos pelas próprias comunidade­s, com apoio dos governos estaduais.

As famílias pagam R$ 1 por um garrafão de 20 litros, dinheiro que vai para uma reserva para consertar ou comprar novas peças.

Para evitar que o sistema se desgaste com rapidez, as famílias são orientadas a usar a água dessaliniz­ada em apenas quatro atividades: beber, cozinhar, escovar os dentes e dar banho em recém-nascidos.

Mesmo restrita, a troca da água salobra pela dessaliniz­ada tem impacto na saúde, com a redução de doenças relacionad­as à água contaminad­a, e também no sustento das famílias, que já usam a água limpa para iniciar seus próprios negócios e fazer planos.

Entre seus queijos e ambrosias, Cristiane de Matos revela o seu: “Não demora e estou no programa da Ana Maria Braga”.

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Raul Spinassé/Folhapress
 ?? Raul Spinassé/Folhapress ?? Alice de Matos carrega galões próximo à máquina que trata a água salgada no povoado de Poções (BA)
Raul Spinassé/Folhapress Alice de Matos carrega galões próximo à máquina que trata a água salgada no povoado de Poções (BA)

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