Folha de S.Paulo

“O sonho dele era dar uma casa para a mãe. Samuel queria dar um conforto para a família

Milton Souza Tio de Samuel, 15, morto em incêndio no alojamento do Flamengo

- Luiz Cosenzo e Marcos Guedes

Vitinho, 15, só queria ser como Drogba, atacante da Costa do Marfim que marcou história no Chelsea (ING). Não era o único entre as vítimas do incêndio do centro de treinament­o do Flamengo que se espelhava em um astro do futebol e sonhava com carreira na Europa.

Em comum, tinham o sonho de poder ajudar a família e, para isso, conviveram com a distância diária dos pais e rodaram o Brasil por uma chance.

Jorge Eduardo, 15, insistiu para se tornar jogador. Em 2015, quando tinha 12 anos, chegou a se cansar das viagens da cidade mineira de Além Paraíba ao Rio. Acabou renovando a energia a ponto de ser campeão estadual sub-15 em 2018 como capitão.

“Ele desanimou quando o avô morreu, mas falei para ele que também tinha vontade de chorar, mas precisava vencer na vida. Ele disse que ia fazer isso e que gostaria de ajudar a família”, diz Rodrigo Pereira, tio do volante.

Foi com esse sentimento que Jorge e os outros meninos mortos no último dia 8 encararam desde cedo uma vida nômade. Eles deixaram suas casas com 14 anos ou menos, rodaram o país em busca de chances e passaram a encarar com naturalida­de residir em pensões e alojamento­s.

O paulista Gedinho, 14, vivia esse ambiente desde 2016, quando chegou ao Trieste, time de Curitiba que tinha parceria com o Athletico-PR.

“Desde o início, ele aguentou bem. Por mais que tivesse saudade, queria ficar lá mesmo, no Trieste ou no CT do Caju [do Athletico]. Eram os pais e a avó que sentiam muita falta. O pessoal do Athletico falava que tinha que forçá-lo a vir para Itararé”, conta Murilo Meneguela, que descobriu o atacante e foi seu treinador.

O pai do atleta, Gedson Beltrão, passou a viajar com frequência a Curitiba e cogitou largar o emprego para acompanhar o filho. Foi demovido da ideia porque o adolescent­e “poderia não virar profission­al e a responsabi­lidade cairia na cabeça do menino”.

As viagens de Beltrão, agora, seriam ao Rio de Janeiro. Foi só no último dia 2, menos de uma semana antes do incêndio, que seu filho chegou ao Flamengo, após deixar o Athletico-PR. Aprovado no teste, conheceu o último alojamento de sua vida e nele se instalou no dia 6. Menos de 48 horas depois, o local estava consumido pelo fogo.

Dois dias fizeram toda a diferença para Gedinho. Para Arthur Vinicius, foi até menos. Na dia do incêndio, ele tinha viagem marcada a Volta Redonda, sua cidade natal. O zagueiro comemorari­a o aniversári­o de 15 anos no sábado, mas morreu aos 14, sem completar o trajeto de 130 km a que estava tão habituado.

Como quase todos os garotos mortos no Ninho do Urubu, Arthur Vinicius era de família humilde, que via no futebol uma chance de ascensão social. Caso parecido com o de Samuel Thomas, 15, que saiu de local violento em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, para se abrigar no CT.

“O sonho dele era dar uma casa para a mãe. Ele queria dar um conforto para a família”, diz Milton Souza, tio de Samuel, que se orgulhava de jogar para a “multidão”.

“Ele sempre falava para a gente quando jogava bem: ‘Tio, conquistei a multidão’. Ele sempre jogava para a multidão ver”, recordou Souza.

Quem também curtia estádio cheio era Vitinho, que passou por Figueirens­e e Athletico-PR antes de chegar ao Flamengo. Criado pela avó, o catarinens­e queria dar a ela uma casa, mas tinha outra meta.

“Queria jogar no Flamengo ou no Corinthian­s. O sonho

Milton Souza tio de Samuel, uma das vítimas

dele era jogar em um time de massa”, afirmou Sérgio Morikawa, que descobriu o atacante em uma peneira em Florianópo­lis e se diz “pai de coração” do menino.

Os voos planejados por Rykelmo, 16, também eram altos. O meia ganhou esse nome em referência ao meia argentino Riquelme e dizia se inspirar também no francês Zidane. Não surpreende que tenha estabeleci­do metas ambiciosas depois de passar por Independen­te de Limeira (SP) e Portuguesa Santista (SP).

“Ele tinha o sonho de jogar fora do país. Sonhava em disputar uma Champions”, contou seu irmão, Diego Viana, sem deixar de apontar o desejo recorrente entre os meninos. “Ele queria ajudar muito o pai e a mãe dele.”

As histórias se sobrepõem. O atacante sergipano Athila, 14, tinha tatuagem dedicada à mãe e buscava “realizar o sonho dele e ajudar os pais”. O zagueiro mineiro Pablo Henrique, 14, queria, além de auxiliar a família, contribuir com o projeto social onde mostrou seu futebol antes de atuar por Atlético-MG e Flamengo.

Quem destoava era o goleiro Bernardo, 14, catarinens­e de classe média. A busca pelo sucesso no futebol tinha tudo a ver com a gratidão a seu pai, Darlei Pisetta, que o acompanhou em diversas viagens.

Toda a trajetória será lembrada em um memorial que Darlei está preparando. A ideia é dispor todas as camisas vestidas e as medalhas que Bernardo ganhou, desde os times amadores, no quarto que era do garoto em Indaial.

O pai do goleiro Christian, 15, não tem esse espaço. Na casa onde Cristiano Esmério vive com a mulher e com dois filhos gêmeos de dois anos, no bairro do Colégio, zona norte do Rio, só há uma cama.

Cristiano guardará na memória os momentos de Christian, que se notabilizo­u como pegador de pênaltis e chegou à seleção brasileira sub-15. Ele assinaria seu primeiro contrato profission­al em 5 de março.

“O alojamento era a alegria dele”, afirmou o pai, incrédulo que o espaço, o sonho do menino e a esperança de dez famílias tenham virado cinzas na manhã de 8 de fevereiro.

“Ele sempre falava para a gente quando jogava bem: ‘Tio, conquistei a multidão’. Ele sempre jogava para a multidão ver

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Zo Guimaraes/Folhapress Cristiano, pai do goleiro Christian, morto no incêndio no CT do Flamengo

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