As piabas e o americano
Projeto Piaba tenta recuperar mercado brasileiro de peixes ornamentais e impedir que criadores migrem para pecuária
A paixão do biólogo Scott Dowd por peixes ornamentais do rio Negro só não é maior do que sua fé na sobrevivência da Amazônia. Ele dirige projeto de venda certificada de animais que adota o lema “compre um peixe e salve uma árvore”.
Scott Dowd, 52, é sempre o primeiro a entrar e o último a sair das águas dos igarapés e lagos em torno do rio Negro. A paixão pelas piabas (peixes ornamentais) desse biólogo nascido em Weymouth (Massachusetts, EUA) só perde para a fé de que os piabeiros da Amazônia vão conseguir sobreviver.
No arsenal reunido por Dowd para resgatar uma atividade que já foi a principal de Barcelos figuram o lema “compre um peixe e salve uma árvore”, um documentário e o que alardeia como primeiro produto vivo do mundo a contar com indicação de procedência (um tipo de denominação de origem de artigos, como o queijo da Serra da Canastra).
É possível também que se trate da menor mercadoria reconhecida pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi). No selo criado aparece em destaque o cardinal-tetra (Paracheirodon axelrodi), que, apesar dos 2 ou 3 cm, mesmeriza aquaristas do mundo inteiro com seus vermelho e azul iridescentes.
Há algo de quixotesco no Projeto Piaba, que Dowd dirige desde Boston, onde trabalha como biólogo conservacionista no Aquário da Nova Inglaterra. Cerca de 6.000 quilômetros o separam de Barcelos, a “capital brasileira dos peixes ornamentais” onde coletou os dados para seu mestrado, 16 anos atrás.
“Quando era menino, ia sempre que podia ao aquário [de Boston]. Era como uma catedral para mim, à qual eu ia para adorar os peixes”, conta o diretor executivo do Projeto Piaba. “Viajava para Barcelos quase todos dos dias olhando para meus peixes no aquário de casa. Eu estudava, sabia que eles vinham de Barcelos.”
O biólogo agora retorna todos os anos para a cidade brasileira e os rios em que pululam as piabas. Lidera duas dezenas de estrangeiros, em geral americanos, numa expedição de barco que parte de Manaus e foi apelidada de “Gringo Doido”, tamanho o entusiasmo dos aquaristas pela região onde vivem alguns de seus animais preferidos.
O entusiasmo dos forasteiros também transbordou no ritmo do Festival do Peixe Ornamental de Barcelos, com o qual a viagem anual sempre coincide, neste ano em 26 de janeiro. Pense numa competição como a dos bois-bumbás em Parintins (AM), mas com peixinhos como estandartes de grupos folclóricos a se enfrentar no estádio conhecido, claro, como piabódromo.
De um lado, a torcida do grupo do acará-disco (espécies do gênero Symphysodon), que defende as cores amarelo e preto. Seu símbolo é um peixe pelo qual aquaristas estrangeiros chegam a pagar dezenas de dólares.
De outro, o vermelho e azul do time do minúsculo cardinal, que responde por 80% dos peixes ornamentais exportados desde Manaus. No exterior, custa por volta de US$ 5 (menos de R$ 20) a unidade, enquanto um acará-disco pode alcançar US$ 50, dependendo da cor e do padrão de listras.
A captura de piabas declina há anos nas florestas inundadas da bacia do rio Negro, chamadas de igapós. Na segunda metade do século passado, estima-se que até 20 milhões de peixes ornamentais eram exportados a cada ano do médio rio Negro. Em 2018, a saída ficou em pouco mais de 3 milhões, gerando R$ 5,4 milhões faturamento.
O retrocesso não se deu por impacto ambiental. Scott Dowd explica que a quantidade de peixes capturados é muito menor que a de espécimes que morrem naturalmente durante a estiagem, que seca boa parte das lagoas rasas em que os peixes se refugiam de predadores.
As maiores ameaças ao modo de vida dos piabeiros estão nas dificuldades logísticas, na concorrência de cardinais da Colômbia ou reproduzidos em cativeiro no Sudeste Asiático e na Flórida e nos empregos criados pela pesca esportiva do tucunaré —o “peacock bass” dos pescadores por esporte que fazem de Barcelos uma Jerusalém.
O lema repetido como mantra por Dowd, “compre um peixe e salve uma árvore”, se ancora na expectativa de que, continuando a pescar piabas, os ribeirinhos não migrarão para a agricultura ou a criação de bois. Peixes ornamentais, assim, ajudariam a evitar o desmatamento.
Compre um cardinal do rio Negro em Boston, Tóquio ou Sydney. Salve uma árvore na floresta amazônica de Barcelos e adjacências, um setor bem preservado da Amazônia.
Por ambiciosa que pareça a palavra de ordem, ela bastou para atrair o grupo de estrangeiros ao cruzeiro de duas semanas a bordo do Dorinha. Cada um pagou US$ 2.500 (R$ 9.500) pela aventura, que inclui arrastar canoas pelos pedrais da região.
A série de viagens teve início nos anos 1990 por iniciativa de Ning Labbish Chao, pesquisador sino-americano que trabalhou na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), criou o Projeto Piaba e recrutou Dowd para a cruzada. Aposentado, Chao vive hoje nos EUA.
Na segunda quinzena de janeiro, o grupo na embarcação se compunha, na maioria, de pesquisadores, estudantes e voluntários ligados ao Centro Hatfield de Ciência Marinha, da Universidade do Estado de Oregon, e ex-funcionários da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).
O ponto alto da excursão fluvial, depois do peixe-bumbá em Barcelos, se deu em Daracuá, comunidade ribeirinha. Décadas atrás, 20 famílias viviam ali. Sobrou só a do casal Francisco de Sousa Colares e Jane Castro Pinheiro, que ainda pegam piabas, mas apostam numa pousada rústica de seis quartos para adeptos da pesca de tucunaré.
Francisco e Jane deslumbram os estrangeiros chamando à beira da praia um botocor-de-rosa, que alimentam diariamente. Parecia um bando de crianças brasileiras no Sea World.
Também demonstram para os forasteiros como se capturam cardinais. Remam ao longo do igarapé Daracuá, que dá nome à comunidade, até uma lagoa de águas plácidas e cristalinas, embora escuras como café.
Na beirada, a areia do fundo torna-se visível e a água se revela avermelhada sob o sol. Dá para ver os cardinais a olho nu. Supõe-se que a lista rubra na parte inferior do corpo ajude a piaba a camuflar-se nesse ambiente rubro e, assim, escapar dos peixes maiores.
Jane bate os dedos na superfície para atrair mais cardinais. Colares começa a recolhê-los com a rede que chamam de rapiché, armação de madeira guarnecida com tela plástica dessas usadas contra mosquitos em janelas.
Uma cuia auxilia na transferência de água e piabas para o paneiro, cesto de palha forrado de plástico. Em poucos minutos se juntam dezenas, centenas de peixinhos.
Mais adiante, o piabeiro mergulha com máscara para recolher pedaços de madeira em que se entocam bagres conhecidos como bodós, com padrões variados de pintas e listras, outra coqueluche entre aquaristas que, assim como os acarás-disco, tem preço unitário maior.
Intermediários dos exportadores manauaras em Barcelos compram o milheiro de cardinais a R$ 12, o que rende ao piabeiro menos de meio centavo de dólar por peixe. Numa boa semana, Francisco chega a capturar 50 milheiros, o equivalente a R$ 600.
Uma empresa de Manaus, como a Prestige, consegue exportar cada unidade por até R$ 0,50. Numa loja dos EUA, o cardinal pode alcançar US$ 6, pouco mais de R$ 20.
Por trás dessa multiplicação dos peixes por mil (ou melhor, de seu valor) está uma logística infernal. A maioria deles segue para Miami, destino de uns poucos voos diretos partindo de Manaus —os quais, no entanto, não carregam as pesadas caixas de isopor de 40 litros com sacos plásticos cheios de água e piabas.
O exportador tem de embarcar a carga primeiro para Guarulhos, e daí para os EUA. São 24h em trânsito, pelo menos, até sair do país —sem contar o trajeto Daracuá-BarcelosManaus, todo feito de barco.
Fica difícil concorrer com os cardinais da Colômbia, onde o frete custa mais barato, ou das empresas que os recriam na Flórida ou na Ásia. Para não falar da burocracia: são sete documentos só para deixar o Brasil (há mais de 700 espécies de peixes autorizadas pelo Ibama para exportação).
Outra desvantagem emerge das condições em que são estocados e viajam os bichos, um fator de estresse que ameaça sua saúde. A mortalidade
da mercadoria brasileira é alta, da ordem de 20%.
O Projeto Piaba reúne várias estratégias para aumentar a qualidade e o valor agregado das piabas do rio Negro. Para começar, o grupo trabalha para aperfeiçoar a condição sanitária dos peixes, de modo a melhorar sua resistência ao estresse.
Timothy Miller-Morgan, veterinário do Centro Hatfield especializado em peixes e companheiro de cabine do repórter no Dorinha, está em sua oitava viagem a Barcelos. Parceiro de Dowd na cruzada pró-piabeiro, já deu cursos de boas práticas em manejo de peixes ornamentais na região.
“Os peixes selvagens são muito saudáveis”, diz MillerMorgan. “Os problemas que temos de resolver vão do momento da captura até o varejo. Vejo melhoras em certas áreas, particularmente onde fizemos nossos programas de treinamento.”
“A qualidade da água de onde eles saem é profundamente diferente da de um tanque doméstico, é essencial desenvolver procedimentos de aclimatação para ajustar esses peixes. Isso precisa ser feito antes que eles deixem o Brasil.”
O plano é comprar um flutuante em Barcelos e doá-lo para a cooperativa de piabeiros, a Ornapesca. Os peixes ficariam estocados ali por semanas, com alimentação balanceada, controle de parasitas e troca constante de água do rio Negro, na esperança de fortalecê-los para recuperar o mercado mundial do Brasil, cuja fatia hoje se reduziu a 5%.
A própria Ornapesca venderia para os exportadores, eliminando um elo da cadeia e garantindo preços melhores. Cardinais e seus colegas do rio Negro sairiam em caixas com o selo da indicação de procedência, garantindo a origem —há um verdadeiro fetiche de aquaristas por peixes selvagens.
A cooperativa, porém, está desorganizada. Em reunião realizada no sábado do Festival do Peixe Ornamental, voluntários do Projeto Piaba arrancaram a custo da centena de presentes o compromisso de marcar encontros mensais, o primeiro em 26 deste mês, para trocar a diretoria e discutir preços mínimos.
O selo de origem obtido em 2014 para os peixes ornamentais do rio Negro pertence juridicamente à Ornapesca. Mas foi a voluntária Mari Balsan, economista gaúcha especializada em denominação de origem de vinhos, que organizou o dossiê de 500 páginas para o processo de três anos no INPI.
Até agora o certificado esteve sem uso. Ele deve valer de verdade a partir de março, quando começa a ser vendido online nos EUA um kit para aquário doméstico no valor de US$ 79,58 (cerca de R$ 300) da empresa Aqueon. Junto irá um vale-cardinais de Barcelos para resgatar em lojas credenciadas. A oferta renderá 10% para o Projeto Piaba.
“Quero mobilizar todos os recursos para destacar esse ramo como preponderantemente benéfico para a região”, afirma Dowd. “Se conseguirmos promover o mercado, isso aumentará o fluxo de renda e ajudará os peixes silvestres a competir com os criados em cativeiro.
“Os hobbistas são apaixonados pelo ambiente. Vão saber que parte de seu dinheiro voltará para a região e desempenhará papel tão importante em ajudar as comunidades e alimentar esse motor de responsabilidade ambiental.”
Além dos kits, Dowd e Miller-Morgan põem fé em que a mensagem se espalhará também com o documentário sobre o Projeto Piaba que seu conterrâneo Don McConnel —hoje morador de Manaus— está finalizando, “Wild Caught” (“capturado na natureza”, em tradução livre).
O filme chegará num momento propício, pois apoiadores do Projeto Piaba esperam que ele funcione como um antídoto para o questionamento do aquarismo desferido por outro documentário, “The Dark Hobby” (“o hobby sinistro”), sobre a controvérsia em torno da captura de peixes marinhos no Havaí.
Um dos especialistas a bordo do Dorinha era Beth Firchau, da Associação de Zoológicos e Aquários, que tem 233 membros detentores de 800 mil animais em cativeiro. Em palestra no cruzeiro, ela defendeu que o setor precisa se esforçar mais para esclarecer o público quanto a seu papel conservacionista.
“Precisamos de mais histórias de sucesso e responsabilidade. Impacto socioeconômico é a direção na qual a conservação está indo. A hora chegou”, afirmou.
Na madrugada de 27 de janeiro, o cardinal acabou derrotando o acará-disco, na avaliação do júri reunido no piabódromo na tarde do mesmo dia. Dentro de um ano, quando os “gringos doidos” retornarem em sua migração anual, talvez haja outro caso de sucesso para contar sobre a piaba símbolo em Barcelos.
Compre um cardinal do rio Negro em Boston, Tóquio ou Sydney. Salve uma árvore na floresta amazônica de Barcelos e adjacências, um setor bem preservado da Amazônia