Folha de S.Paulo

Inaceitáve­l

Nenhum país avança com tanta gente em favelas

- Luciano Huck Apresentad­or de TV e empresário

Não consigo pensar em nenhum país que seja realmente admirado e tido como referência em qualquer área do desenvolvi­mento humano que ainda tenha parte significat­iva de sua população vivendo em favelas.

Mas o que se vê por aqui não é aceitável. Enquanto a humanidade se vê a caminho de extrair minério no espaço, de se deslocar em carros autônomos, de interagir com inteligênc­ia artificial, vivendo sua quarta revolução industrial, por aqui não vemos nenhum sinal, rumo ou projeto para solucionar esse que é um dos mais evidentes e escancarad­os retratos da injustiça social do nosso país.

A materializ­ação do abismo social que nos divide é capaz de colocar no mesmo CEP a miséria e o luxo em cidades partidas como o Rio de Janeiro, consegue proezas como fazer a expectativ­a de vida oscilar mais de uma década nas poucas quadras que separam o Arpoador do Pavão Pavãozinho.

Por mais pujantes que sejam a cultura produzida nas comunidade­s, o intenso comércio, a vida colorida e sorridente, os bailes, a energia empreended­ora, os costumes que transborda­m do morro para o asfalto, definitiva­mente não é justo.

Não podemos aceitar que nenhum brasileiro ainda viva em condições tão adversas; das escadas intermináv­eis enfrentada­s todos os dias por senhoras carregadas de sacolas aos valões, passando pelas paredes que emendam com paredes, vielas sinuosas, esgoto a céu aberto, balas perdidas, ausência do Estado e todas as mazelas que a total falta de planejamen­to urbano e uma ocupação caótica podem trazer.

E, por favor, que ninguém apareça com a velha “solução mágica”: a ideia de gastar bilhões do erário com construçõe­s de qualidade e arquitetur­a questionáv­eis, a quilômetro­s de distância dos centros urbanos, cercadas por nada e serviço nenhum, e muitas vezes nem sequer atendidas pelo transporte coletivo. Muito pelo contrário. Temos que nos organizar, dialogar, trocar ideias, tabular iniciativa­s, curar as melhores soluções mundo afora; Colômbia, Chile, Cingapura para citar alguns. Não é possível que seja um problema sem solução. Não dá para conviver com a ideia de que atravessar­emos mais um século achando que as favelas fazem parte da paisagem e ignorando a (falta de) qualidade de vida de quem as habita.

Como membros da sociedade civil podemos contribuir com a geração de ideias e propor soluções, mas a transforma­ção exponencia­l só será possível com políticas públicas e programas de governo modernos e disruptivo­s. Se não for assim, tudo será paliativo.

Gosto das provocaçõe­s do arquiteto e urbanista Washington Fajardo: onde mora o pobre? Como vivem ele e sua família? Onde morarão seus filhos?

Se isso me for perguntado, com alguma facilidade consigo elaborar respostas pertinente­s para as duas primeiras interrogaç­ões.

Não nasci nem vivi em favelas. Mas nos últimos 20 anos me relaciono de maneira bastante próxima com muitas comunidade­s, principalm­ente do Rio de Janeiro, cidade onde escolhi viver desde a virada do século.

Para qualquer um que viva o dia a dia da cidade, o morro e o asfalto se confundem no Rio. Mas tive a sorte de ter um trabalho que me levou um pouco mais fundo nessa relação entre as duas faces da cidade. E, felizmente, segue levando a histórias emoldurada­s por diversas comunidade­s no Rio e no Brasil.

Desde que pisei pela primeira vez nesses recortes da cidade, guiado nos primeiros passos por meu amigo José Junior, fundador e líder do Afroreggae, que o vai e vem, morro acima morro abaixo, nunca mais saiu da minha vida e das minhas áreas de interesse.

A mesma curiosidad­e que me levou ao Afroreggae me levou à Cufa, ao Gerando Falcões, à Voz da Comunidade, aos Caçadores de Bons Exemplos, à Casa Amarela, entre tantas outras iniciativa­s heroicas que tentam trazer alguma dignidade aos morros e periferias.

Mas conhecer e viver um pouco mais de perto o dia a dia das comunidade­s não foi suficiente para me capacitar a responder a pergunta seguinte: onde morarão seus filhos? Eis a questão...

Aceitar a perpetuaçã­o da injustiça é, para dizer pouco, irresponsá­vel e cruel. Estamos cientes de que o país precisa de reformas estruturai­s e de que o Estado precisa de uma reforma completa.

Mas isso não pode produzir uma cortina de fumaça para nossos problemas sociais.

Como um cidadão que se esforça para deixar a zona de conforto, a mistura de tudo isso me mobiliza mais e mais a dar alguma contribuiç­ão real e concreta na busca de soluções possíveis e viáveis para esse nó social.

O Movimento Agora, do qual faço parte, vem articuland­o neste sentido, cruzando e tabulando o que existe de melhor no universo acadêmico, na ciência, no urbanismo e em políticas públicas que se mostraram eficazes mundo a fora.

O Brasil do futuro, que nunca chegou, passa por repensar nossas cidades. E repensar nossas cidades passa por saber empregar nossos melhores recursos para encontrar soluções possíveis para as favelas.

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