Folha de S.Paulo

Ernesto, Damares e os dragões

Batalhas contra os monstros reais não começaram

- Valdinei Ferreira Pastor titular da Primeira Igreja Presbiteri­ana Independen­te de São Paulo e doutor em sociologia (USP)

Dragões povoam o imaginário cristão desde os primórdios. São Jorge é conhecido como matador de dragões. Pouco conhecida é a lenda a respeito de Santa Marta. Segundo a tradição cristã, Marta e seus irmãos foram para o sul da França e evangeliza­ram o vale do Ródano. Em Tarascon havia um dragão que aterroriza­va o povoado e exigia o sacrifício de meninas. A ativista Marta domou o dragão e, depois de prendê-lo com seu cinto, enviou a fera de volta ao mar Mediterrân­eo.

A temporada de caça aos dragões foi aberta com o novo governo. Os dragões são o socialismo, o globalismo, o feminismo, as migrações e a ideologia de gênero. Sejamos justos, pois governos petistas também tinham seus dragões: a direita, o neoliberal­ismo, as privatizaç­ões e a Lava Jato. Que governos elejam inimigos da pátria e criem narrativas de conspiraçõ­es não é nenhuma novidade. O que há de novo é a entrada da retórica cristã na engrenagem do Executivo por meio dos ministros Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Religiões operam no âmbito da convicção, por isso não se espera de pessoa religiosa que oculte suas crenças. Na língua grega, citada por Ernesto Araújo em seu discurso de posse, martureo, que significa dar testemunho, e martus, testemunha ou mártir, derivam da mesma raiz.

Espera-se de um cristão que dê testemunho de sua fé em todas as circunstân­cias, inclusive naquelas que o conduzirem ao martírio. A sensação de mal-estar pela retórica desses ministros não provém da contundênc­ia das declaraçõe­s feitas na esfera pública. Se não há nada de errado em ter convicções e menos ainda em expressá-las, qual é a razão do sentimento de mal-estar provocado pelas falas em questão?

A inadequaçã­o não está na convicção em si, mas na falta da percepção de que a posição social determina qual é o modo mais coerente de se sintonizar com o conteúdo da crença e transformá-la em palavras e atitudes.

Daqueles que ocupam posições de poder político e se apresentam como cristãos espera-se que o testemunho (martureo) se dê numa atitude de serviço, escuta, gentileza e humildade. Esse discernime­nto é um desafio tanto para a religiosid­ade de inspiração nacionalis­ta quanto para a evangélica triunfalis­ta. Ambas são vivências religiosas do tipo ostentação.

Mas voltemos aos dragões reais: violência, crime organizado, corrupção, desigualda­de, desemprego, privilégio­s dos altos escalões governamen­tais. De modo sóbrio, mas bastante contundent­e, os primeiros sinais de como esses monstros serão enfrentado­s foram dados pelos ministros Sergio Moro e Paulo Guedes. Enquanto as batalhas contra os verdadeiro­s dragões não começam, nosso Jorge e nossa Marta nos distraem com suas histórias.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil