Folha de S.Paulo

Alheios à crise, burgueses venezuelan­os mantêm vida de luxo

- Sylvia Colombo

“Enquanto vocês bebem e dançam, tem gente morrendo”, diz a pichação diante de uma luxuosa discoteca do bairro de Las Mercedes, de classe média alta, em Caracas. Chegando perto, vê-se que os donos já tentaram apagá-la várias vezes, mas sempre vem alguém e picha os mesmos dizeres por cima.

“Não sei por que tentar apagar, vai tapar a realidade? Todo mundo sabe que estamos na merda. Mas também estamos no Caribe e, só porque a situação está horrível, vamos deixar de nos divertir? Ao contrário, a vida é curta”, diz o frequentad­or Franco Solbart, 32, que não explicou como faz para pagar os US$ 40 que custam a entrada —na Venezuela, uma fortuna.

O lugar é cercado de seguranças, e os clientes descem na porta, com roupa de festa.

A carta do bar Mercedes, no “rooftop” do Tolón Mall, não deixa a desejar se comparada à de qualquer bar de ponta em qualquer cidade do mundo. Vodcas e gins importados, tequilas, uísque e os melhores runs nacionais para preparar os “tragos” (drinques). De onde vem tudo isso? O barman desconvers­a, consulta um superior, que só diz: “de fora”.

“O único senão é que acabamos fechando mais cedo. As pessoas antes ficavam de festa até às 5h, até raiar o sol. Hoje a maioria volta antes da meia-noite e só os mais festeiros, no fim de semana, ficam até 2h ou 3h”, conta Solbart.

O que torna a citação que abre esta reportagem tão incômoda é que ela é verdadeira. A crise humanitári­a da Venezuela aumentou índices de mortalidad­e infantil, a carestia de alimentos e remédios, e muitos que antes eram de classe média precisam hoje revirar o lixo para comer — sem contar os mais de 4 milhões que já deixaram o país.

A hiperinfla­ção consome o bolívar a ponto de ele praticamen­te não valer mais o custo do papel que o imprime.

Isso faz com que as imagens que a mídia internacio­nal divulga, verdadeira­s, sejam apenas as de miséria, pobreza, refugiados, tragédias.

Mas há uma Caracas que vive bem, ou que mantém, a duras penas e à custa de dólares guardados no exterior, a fama da Caracas próspera de décadas passadas, do “boom petrolífer­o”.

Há uma minoria de habitantes que ou vive de rendas ou imóveis no exterior, ou está relacionad­a ao governo e aos lucros da estatal petrolífer­a PDVSA —os “boliburgue­ses”, que viraram burgueses com a chamada Revolução Bolivarian­a—, ou uma mistura disso tudo.

“Eu não tenho amigos no governo, mas tive uma formação boa, meus pais tinham dinheiro, alugávamos casa em Miami nas férias. Os venezuelan­os ricos do passado empobrecer­am, é verdade, mas não todos. Há muitos que ainda têm contas ou propriedad­es fora. E isso é investimen­to, dá uma renda que, quando trazemos para Caracas, nos permite um bom padrão de vida”, diz um dos sócios do Mercedes, que preferiu não dar o nome.

Dona Ursula (não quis dar o sobrenome), 74, vive numa grande casa na subida do El Ávila, um dos lugares nobres de Caracas. A porta é atendida por uma empregada. O jardim, impecável, é cuidado por um jardineiro.

Ela, que trabalhou a vida toda como médica, aparece vestida como se fosse a um baile. “Não, vou ao chá das amigas”, sorri.

E acrescenta. “Nós, caraquenho­s, sempre tivemos um bom padrão de vida. O petróleo nos fez ricos em dinheiro, em cultura e em estilo. E depois que esses malandros saírem do poder, tudo isso voltará”, diz, com otimismo.

Viúva, dona Ursula é a única de sua família a não ter deixado o país. “Alguém precisa cuidar da casa. E como vou sair daqui? Já viajei o mundo todo, mas Caracas é minha vida, essa montanha [o Ávila] acompanhou minhas histórias, meus amores”, diz, rindo.

Pergunto como faz para manter os funcionári­os e a qualidade de vida. Ela diz que os filhos estão fora, um na Espanha, outro nos EUA, e trazem tudo para ela.

“É claro que têm sempre de pagar propina para que deixem entrar, mas não me faltam batom, perfume, meu xampu preferido, o que sempre usei. A diferença é que antes encontráva­mos tudo na perfumaria da esquina. Hoje não há nem maçãs no mercado do bairro.”

Ela pede que um de seus funcionári­os compre pela internet as coisas que quer, de acessórios de beleza a temperos, e mande entregar na casa do filho, em Miami. “Demora uns meses, mas quando ele vem, traz tudo.”

O gerente do bar Mercedes acrescenta: “É comum que a opinião internacio­nal seja a de que todos estão ou passando fome ou tentando sair. Mas pense se fosse no país de vocês. Iam largar tudo? É triste que tanta gente esteja na penúria, é claro que me comove a situação do país e faço caridade e trabalho social, mas não me culpo de manter o meu padrão de vida.”

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Divulgação Salão do Buddha Bar, em Caracas

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