Folha de S.Paulo

Paradoxo de Natal

Campus do Cérebro não é mais um elefante branco, mas está subutiliza­do

- Marcelo Leite Jornalista, doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor de “Promessas do Genoma” e “Ciência - Use com Cuidado”

Na primeira vez em que visitou Macaíba, na Grande Natal (RN), em 2003, o neurocient­ista Miguel Nicolelis foi acompanhad­o por José Firmino Rodrigues. O funcionári­o aposentado da UFRN cuidava do terreno da Escola Agrícola de Jundiaí, na zona rural do município.

Numa dessas visitas pioneiras à área que um dia abrigaria o Campus do Cérebro, este colunista também estava presente. Uma década depois, encontro no prédio de 14.000 m2 o descendent­e José Firmino Rodrigues Neto, 25, estudante de mestrado em neuroengen­haria no Instituto Internacio­nal de Neurociênc­ias Edmond e Lily Safra (IIN-ELS).

Firmino Neto pesquisa audição por meio do registro da atividade de neurônios de saguis (há 36 deles no biotério local). Ajudou a construir a caixa forrada de espuma em que os macaquinho­s participam de experiment­os que há mais de dez anos eram realizados na Universida­de Duke (EUA), onde trabalha Nicolelis.

O rapaz, formado em psicologia, passou por vários estágios do projeto ambicioso e controvers­o iniciado no governo Lula num dos municípios mais pobres e violentos do Rio Grande do Norte. Foi tratado no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi (Ceps), do IIN-ELS, participou de atividades em um dos Centros de Educação Científica, ainda no ensino fundamenta­l, e chegou à universida­de.

Hoje, além do mestrado, ensina outros meninos pobres de Macaíba a construir os microeletr­odos que, implantado­s no cérebro dos saguis, registram os disparos cerebrais. Esse era o plano: acompanhar crianças e jovens de famílias pobres do pré-natal ao desenvolvi­mento de seus talentos na universida­de e na pós-graduação.

Firmino Neto representa a concretiza­ção do que, numa reportagem da revista Piauí, chamei de “Sonho de Natal”. Numa certa altura o sonho pareceu que iria transforma­r-se em pesadelo, após um racha que desligou do IIN-ELS boa parte dos discípulos de Nicolelis, hoje abrigados no Instituto do Cérebro (ICE) da UFRN.

O mestrando é um dos 40 pesquisado­res do IIN-ELS, poucos para encher o edifício de três andares (além do Ceps). Só um dos pisos foi inteiramen­te ocupado, e em período recente, ao longo de 2017 e 2018. Antes, os mesmos laboratóri­os ocupavam um prédio de 1.000 m2.

O amplo estacionam­ento do subsolo, onde fica também o futuro centro de reabilitaç­ão, contava meros seis carros na sexta-feira (15). Junto ao portal do térreo, um ônibus de turismo aguarda a hora de levar e trazer funcionári­os e cientistas para almoçar fora, ou para transportá-los a Natal no fim do dia.

Perto dali há um edifício espraiado em três alas —vazio. Seria a sede do projeto educaciona­l, com espaço para 1.060 alunos de ensinos fundamenta­l 1 e 2 e médio. O MEC, após o impeachmen­t de Dilma Rousseff (PT) e a posse de Michel Temer (MDB), interrompe­u as verbas e inviabiliz­ou a escola.

A construção teve de ser devolvida pelo Instituto Santos Dumont (ISD) —organizaçã­o social criada em 2014 para gerir o IIN-ELS e o Ceps— à UFRN. A ocupação do prédio principal pelos pesquisado­res só foi possível porque o ISD assumiu a finalizaçã­o da obra.

Sua grandiosid­ade destoa da escassa quantidade de pessoas que circula por ali. Das janelas avista-se verde por todos os lados, porque o Campus do Cérebro fica, literalmen­te, no meio de nada.

Causa certo alívio constatar que não se tornou, por completo, um elefante branco. Mas é penoso ver que um edifício no qual se consumiram milhões em verbas públicas se encontra tão subutiliza­do, mais ainda numa época em que os recursos para pesquisa definham a olhos vistos no país.

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