Folha de S.Paulo

Nostalgia desinibida

No centenário da República de Weimar, Berlim revive a onda de glamour, boemia e libertinag­em eliminada pelo nazismo

- Guilherme Genestreti

berlim Em meio à fumaça que domina o palco, surge um rosto pálido, empetecado com uma peruca ruiva que lembra a cabeleira de Marlene Dietrich. Abaixo do pescoço, um smoking impecável; acima, maquiagem branca que dá um ar fantasmagó­rico às feições de boneca melindrosa.

“Boa noite, queridos voyeurs, loucos e sedentos por sexo”, diz, em alemão, esse mestre de cerimônias logo após ter pedido que todos deixassem suas “inibições na porta”. “Entrem num mundo proibido de escândalo, intriga e autoindulg­ência, e dancem com os belos e os malditos.” Podia ser 1919, mas é 2019. No centenário da República de Weimar, a capital alemã está imersa em nostalgia da época que ficou conhecida em livros e filmes por noites libertinas, manifestaç­ões artísticas de vanguarda, pelo design da Ba uh ausep ela turbulênci­a social que culminaria, dali apouco, na ascensão do nazismo.

Talvez não por acaso, o Festival de Berlim, que terminou neste sábado, tenha trazido ecos curiosos daquele momento histórico, a começar por sua cerimônia de abertura, carregada de serenatas dos anos 1920, e pelos vários debates que frisaram o temor diante de uma derrocada das democracia­s.

Um dos longas mais falados dessa edição da mostra de cinema, “The Golden Glove”, doal em ãoFat ih Akin, começa coma imagem de um serial killer no alto de uma escadaria, cercado por sombras. Oque vemàmenteé­Nosf era tu, o vampiro deu madas obras mais emblemátic­as do expression­ismo alemão, movimento cinematogr­áfico que floresceu naqueles tempos.

“Mr. Jones”, da polonesa Agnieszka Holland, foi outro filme que revisitou o período, evocando o incêndio do Reichstag, estopim para que, em 1933, Hitler concentras­se poderes e pusesse fim à tal efervescên­cia cultural dos berlinense­s do entreguerr­as.

Só que é mais fora do cercadinho do festival que essa nostalgia vigora. Nos últimos dois anos pipocaram festas temáticasd­os anos 1920. Homens vão de gravata borboleta e mulheres,de vestidinho de franja, boá, penteado em estilo charleston e cigarrilha. Amais conhecidaé a itinerante Bohème Sauvage, que se expandiu para além da capital alemã e ago rate medições em outras metrópoles, digamos, pangermâni­cas—Hamburgo, Colônia, Zurique e Viena.

Le Pustra, nome artístico do performer do início deste texto, é um dos maiores chamarizes desse “revival”. Ele apresenta shows concorrido­s em Berlim, que chegam a custar até €32, o uR $135, e trazem números musicais e esquetes com artistas andróginos da cena noturna da cidade. Seu conceito estético, afirma a este repórter, é inspirado sobretudo no personagem Emcee, de “Cabaret”, filme musical de Bob Fosse ambientado na Alemanha do começo dos anos 1930.

“Acidade nunca perdeu essa liberdade artística. Até hoje, atrai turistas e boêmios que querem cair na noite e se reinventar”, diz o sul-africano de 41 anos que levou sua bagagem teatral para Londres antes de se estabelece­r em Berlim, há quatro anos. renovado” Hoje, nota entre um os “interesse alemães pelo espírito de Weimar. Suas apresentaç­ões são encerradas coma música“Das Lila Lied”, canção composta nos anos 1920 e tida como o primeiro hino gay da história. Naquele período, acidade ficou conhecida como um oásis homossexua­l, imortaliza­dona obrado escritor b ri tânico Christophe­r Isherwood. Na década seguinte, gays alemães seriam mandados para campos de concentraç­ão. “Meu objetivo é explora ra liberdade que e reo zeitgeist daqueles curtos anos ”, diz o performer, que esboça comparaçõe­s entre os boêmios de então e os boêmios da era Angel a Merkel. “As almas perdidas da República de Weimar celebraram sua breve liberdade indo ao extremo em bares undergroun­d e cabarés. Hoje, buscamos uma nova válvula para escapar às nossas vidas cibernetic­amente dominadas.” Depois que seu show, o “Kabarett der Namenlosen”, cham ou atenção de revistas de moda e publicaçõe­s para turistas descolados, Le Pustra foi chamado para atuar na terceira temporada da série “Babylon Berlin”, disponível no Globoplay, outro dos motores dessa nostalgia. No ar na TV desde 2017, o thriller policial acompanha as rondas noturnas de um investigad­or ques e envolve nas intrigas políticas que marcaram a metrópole na vir adada década de 1920 para ade 1930. Especialis­ta na cultura da era Weimar, o historiado­r Jochen Hung crê que o interesse na época pode ter sido reavivado devido aos efeitos da crise econômica de 2008. “Houve numerosos textos alertando sobre os perigos que se impõem à democracia quando eleitores que sofreram baques financeiro­s optam por políticos populistas. E aquele foi o exemplo mais vívido disso.” Na época, os alemães enfrentara­m a penúria da hiperinfla­ção e se insurgiram contra as condições do Tratado de Versalhes, firmado pelos países vencedores da Primeira Guerra. O descontent­amento difuso ajudou a levar os nazistas ao poder. Hoje, sustentada por um sentimento anti-imigração e escorada num discurso que tem apelo entre camadas que sofreram com os efeitosd acrise, asiglaultr anacionali­sta Af Déa maior bancada de oposição ao governo. Hung é crítico a visões anacrônica­s sobre o período que antecedeu achegada de Hitler, em particular à versão cristaliza­da e romantizad­a de que estavam todos caindo na gandaia enquanto trevas cresciam ao redor deles, isto é, de que bebiam —e dançavam— à beira do abismo. “Essa era só uma pequena porção da vida noturna na cidade. Frequentar clubes atléticos ou de tiro eram atividades mais mundanas do que ir ao cabaré”, diz. Ele cita o fracasso de público que foi o filme “Metrópolis”, de Fritz Lang, hoje um ícone inquestion­ável. “Só poucos iam às exposições dadaístas ou estudavam na Bauhaus. Ainda assim, esse fenômeno marginal hoje é visto como a totalidade da vida cultural alemã.” Le Pustra acha que a nostalgia se explica pela falsa percepção de que eram tempos mais glamouroso­s aqueles. “E não há nada de errado com isso.” Colaborou Arthur Cagliari

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Tina Dubrovsky/ Divulgação O performer Le Pustra, que ajudou a alavancar a nostalgia nas noites berlinense­s

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