Folha de S.Paulo

Carla Watanabe Meu sonho é ser o que eu sou e pronto, já está bom

Primeira tabeliã transexual do país, ela diz que teve medo de enfrentar resistênci­a no trabalho e que a primeira a saber de tudo foi sua mulher

- Victoria Azevedo

“Logo que comecei o segundo grau [na escola], eu estava passando pela praça Tiradentes, no Rio, e encontrei umas travestis e perguntei como elas faziam pra ter aqueles corpos. A maioria fugiu e não quis falar comigo. Mas uma teve a boa vontade de me contar. Saindo de lá, passei na primeira farmácia que vi e comprei o que ela me indicou”, diz a tabeliã Carla Watanabe, 53.

Segundo a Associação dos Notáriose Registrado­res do Brasil, ela é a primeira e única tabeliã transexual de que se tem notícia no país. É titular concursada do 28º Tabelião de Notas da Capital e diretora do Colégio Notarial do Brasil – Seção SP.

“Não penso no fato de ser a primeira, mas fico feliz em estar abrindo uma porta para outras. É fácil associar a imagem de transexuai­s à violência, à marginalid­ade, ao consumo de drogas. Mas as pessoas esquecem que as travestis podem e devem ocupar qualquer cargo na sociedade”, diz.

Carla é formada em engenharia mecânica-aeronáutic­a pelo Instituto Tecnológic­o de Aeronáutic­a (ITA) e em direito pela Universida­de de Brasília (UnB). Antes, foi cadete-aviador da Academia da Força Aérea. “Fui tentar combater isso [a ideia de ser transexual] no serviço militar. Mas voltei para casa no terceiro ano. Vi que não era pra mim.”

O percurso para assumir publicamen­te que era mulher foi longo. Há seis anos, ela ainda se apresentav­a como Sergio Watanabe, nome com que foi registrada ao nascer, em Belém, no Pará.

A única pessoa que sabia de sua condição era a mulher, Flor Alves, 68 —com quem vive há 25 anos e tem uma filha, Carolina, 15. “Com dois anos de relacionam­ento, eu contei. Ela sabia desde o início.” Seguiram juntas. “O que é o amor que a gente busca? Eu convivo bem com a Flor, temos uma filha. Não é um amor carnal, ele é de companheir­ismo e de carinho.”

Com os pais, foi diferente. Carla não sentia abertura para conversar com a mãe, Áurea, dona de casa e “católica fervorosa”. Tinha medo de decepcioná-la. Mas sempre sentiu que ela sabia de tudo. “Ela ficava me policiando. Qualquer deslize que eu cometia, me batia”, diz.

A tabeliã lembra de uma visita que fez com a mãe a um convento, quando era jovem. Folheou um revista e encontrou uma matéria sobre uma transexual. “Aquilo era raro. Olhei para um lado, olhei para o outro e rasguei a notícia pra levar para casa. A minha mãe descobriu. Apanhei e fiquei de castigo.”

Frequentav­am a igreja —Carla chegou a ser coroinha. “Minha vida sempre foi marcada por essa eterna luta entre a ideia de pecado, de certo e de errado.” Carla também tinha que lidar com o temperamen­to “extremamen­te violento” do pai, Katsuji, que era sargento da Aeronáutic­a. “Era comum acordar na madrugada com berros da minha mãe e o barulho das coisas sendo quebradas. Até os meus 40 anos eu ainda acordava no meio da madrugada sentindo essa sensação de ter que correr para socorrer a minha mãe.”

Quando a mãe morreu, em 1999, em decorrênci­a de um tumor no cérebro, Carla, que tem dois irmãos, diz que foi a única da família que acolheu o pai. “Ele mudou, se arrependeu. Fazer o quê, poxa? Não ia abandoná-lo simplesmen­te”, diz. E começa a chorar.

“O meu pai...”, ela para e respira fundo. “Ele mudou completame­nte e eu voltei a amálo. Na verdade, eu nunca deixei de amar. Por onde eu andava, levava ele comigo.”

Carla arranjou um emprego para o pai no cartório, como auxiliar — era “o [cargo] que tinha o menor salário”.

Nesta altura, a tabeliã já tinha começado a modificar o próprio corpo. Fez uma cirurgia de implante de seios —mas usava roupas largas para que o pai não percebesse.

Em 2017, ele morreu quando voltava do trabalho, vítima de um ataque cardíaco. “A morte do meu pai foi o último bastião para uma transição mais efetiva no ambiente profission­al”, diz. Desde que chegou ao 28º cartório, em maio de 2005, Carla sempre se apresentav­a como Sergio. Um ano depois da morte do pai, passou a ir ao trabalho vestida de mulher.

No primeiro dia, escolheu a roupa “a dedo: era um conjuntinh­o salmão. Não aguentava mais usar roupas largas”.

Reuniu os funcionári­os em sua sala para anunciar a mudança. Recebeu flores em troca. “A gente às vezes olha só os intolerant­es, mas teve todo esse lado bom. Eu fui super acolhida.” Um dos colegas chegou a fazer um discurso dizendo que, se fosse preciso, eles criariam uma rede protetiva interna e externa para defendê-la.

A partir do momento em que se assumiu, pesadelos recorrente­s que teve durante décadas desaparece­ram. “Isso daí é um sinal de que as coisas mudaram na minha vida, né? [risos].” Conseguiu controlar a depressão.

Por outro lado, alguns clientes, familiares e amigos viraram as costas. Vizinhos pararam de andar no elevador com ela. “Há um tempo, eu era um profission­al respeitado, homem, branco, bem-sucedido e que tinha todas as portas abertas. De repente, passei a ser uma pessoa marginaliz­ada.”

“Não escolhi ser trans. Eu nasci trans. Desde o meu primeiro pensamento, eu já sabia que era transexual. Achava as meninas tão mais bonitas”, afirma. “É importante desmistifi­car todo o preconceit­o. Nós somos pessoas normais. Não entendo como tem gente que ainda quer proibir o ensino de gênero nas salas de aula”, segue a tabeliã, que chegou a sofrer bullying de colegas na escola.

“Ficava no fundo da sala para que ninguém me visse. Sentia que em todos os lugares que passava eu tinha que estar invisível, para que as pessoas não percebesse­m a minha existência.”

Quando assumiu que era transexual, a tabeliã teve receio de enfrentar resistênci­a à sua transição no meio jurídico. “Ele espelha o que a sociedade brasileira pensa. E, de fato, há correntes conservado­ras. Eu sei que nem todos veem o que eu sou de forma positiva.”

Carla acredita que grandes avanços para a comunidade LGBT se deram a partir de medidas tomadas pelo poder Judiciário. “Se não fosse por ele, nós não teríamos a união homoafetiv­a e nem a possibilid­ade de alteração de nomes dos transgêner­os. Ficaríamos nas mãos de um Legislativ­o e de um Executivo conservado­res”.

Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que transexuai­s e transgêner­os têm o direito de alterar o nome social e o gênero no registro civil, mesmo que não tenham sido submetidos a cirurgia de mudança de sexo ou tratamento hormonal.

Com isso, o processo que ela tinha aberto em setembro de 2017 ganhou mais velocidade. Um ano depois, conseguiu a certidão de nascimento com o nome Carla.

Na última quarta (13), o plenário do STF começou o julgamento sobre a criminaliz­ação da homofobia. Relator de uma das ações em análise, o ministro Celso de Mello se referiu, em seu voto, a “mentes sombrias” que “desconhece­m a importânci­a do convívio harmonioso e respeitoso de ideias antagônica­s”. A sessão será retomada na próxima quarta (20).

“Se depender do voto do ministro Celso de Mello, há promessas de um resultado positivo. Não dá pra ficar quieto nessa hora. Espero que os outros ministros sigam isso”, diz.

Segundo dados da ONG Transgende­r Europe divulgados em 2018, o Brasil está em primeiro lugar no ranking de assassinat­os de transexuai­s. “Infelizmen­te, a maioria da população trans no Brasil não passa dos 35 anos. Penso que, se eu tivesse me assumido quando criança, talvez fizesse hoje parte dessa estatístic­a.”

Apesar disso, Carla diz que seu maior arrependim­ento foi ter demorado tanto. “Faltou coragem. Mas a história não é feita de ‘e se’, né? Meu sonho é ser o que eu sou e pronto, já está bom. E fazer com que as pessoas entendam que ser trans é ser igual. Ser minoria é ser igual.”

Há um tempo, eu era um profission­al respeitado, homem, branco, bemsucedid­o e que tinha todas as portas abertas. De repente, passei a ser uma pessoa marginaliz­ada em todos os aspectos possíveis.

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Karime Xavier/Folhapress A tabeliã Carla Watanabe no 28º Tabelião de Notas da Capital, localizado no Tatuapé, em São Paulo

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