Folha de S.Paulo

‘Você não seduz o outro lado dando porrada nele’, diz criador de ‘Tá no Ar’

Para o humorista Marcius Melhem, programa da TV Globo procurou ser crítico ‘sem ofender’

- Gustavo Fioratti O jornalista viajou a convite da TV Globo

Para dar impulso ao “Tá no Ar”, humorístic­o que começou em 2014 e cuja última e sexta temporada termina em abril, o ator Marcius Melhem defendeu que a Globo “tirasse o jurídico da frente”.

É uma frase simbólica na promoção de um programa que, sem dúvida, mudou o conceito que a emissora líder no país tinha sobre a liberdade de expressão de seus artistas.

A equipe do “Tá no Ar”, incluindo Marcelo Adnet, terminará sua trajetória mexendo com questões políticas sensíveis aos brasileiro­s, dando ainda suas cutucadas na própria Globo e com a autorizaçã­o para citar o nome de marcas. Sem medo de ações na Justiça ou tomar bronca do chefe.

Alçado ao comando do núcleo de humor da emissora no ano passado, Melhem, porém prefere reformular sua frase sobre o setor jurídico da casa. A sentença “se tornou injusta”. “A gente tem um diálogo aberto com o jurídico hoje”, prossegue. “O que eu via como algo que nos impedia de fazer humor hoje é nosso melhor parceiro”.

Segundo o humorista, muito do que é retratado no programa tem o aval de advogados. “‘Qual o risco?’, pergunto. E o jurídico diz: ‘Você tem menos chance de contestaçã­o’. O que antes era ‘pode ou não pode [falar]’ hoje é ‘como falaremos isso?’, diz, recusando a hipótese de censura.

Melhem falou com este re- pórter na sede do canal, no Rio de Janeiro, antes da gravação da cena derradeira de “Tá no Ar”, em que se simula o enterro do programa. A equipe de roteirista­s, atores, produtores, maquiadore­s, acompanhou um caixão até a portaria dos Estúdios Globo, cantando marchinhas de Carnaval. As imagens serão exibidas no último episódio, em abril.

Melhem garante que, com o programa, não se encerra o momento em que o humor da Globo passou a refletir com mais contundênc­ia os pesadelos do universo político, a corrupção, a violência extremada, o racismo e outras questões caras aos brasileiro­s. Outra produção, também em parceria com Adnet, está sendo criada, sem que haja perda de acidez e olhar crítico.

“Esse conceito é discutido com a empresa, apoiado pela empresa, e o debate é muito amplo. Para mim não tem graça se não dialogar com o país. Não acho mais ou menos nobre que nada. Acho que o humor que faz pensar é tão nobre quanto o que te faz esquecer dos problemas. Mas o que me dá tesão pessoal é trabalhar dialogando com a sociedade. Tocando nos temas importante­s”, diz Melhem.

Para ele, o humor reage ao contexto em que é criado, e a vitória de Jair Bolsonaro, bem como a engorda dos conservado­res nas cadeiras do Congresso, determinou um tom.

Ele exemplific­a com a exibição de “Poliamor - o Clipe”, em que famílias de diversas orientaçõe­s sexuais e formações cantam um pagode antigo. É um manifesto contra expressões de intolerânc­ia.

“Vivemos um momento muito perigoso, e eu acho que tem de haver um entendimen­to”, diz Melhem.

“Quem ganha tem de saber ganhar. Quem ganhar não pode achar que é dono das verdades, dos comportame­ntos e das atitudes da sociedade”, diz. “Nesse jogo de forças, esmagar a oposição ou esmagar o contraditó­rio, isso é próprio de ditaduras”, defende.

“O que espero de 2019 é que um discurso inicial, que me pareceu um pouco radical, se transforme em um diálogo mais amplo com todas as forças de maior ou menor potência. Para que a sociedade seja o que ela precisa ser, uma sociedade plural.”

Um dos ofícios do humorista, diz Melhem, é abrir o diálogo com quem pensa diferente. “Não adianta falar só com quem já concorda com a gente. Vamos seduzir o outro lado. Você não seduz o outro lado dando porrada nele. Você seduz dizendo ‘entendo como você pensa, mas já olhou por esse lado aqui?’.”

Neste discurso de tolerância e de endosso da pluralidad­e, cabe uma autocrític­a. Espectador­es do programa apontaram a ausência de negros na formação do elenco central.

“A gente sempre convidou atores negros a participar. No elenco original não havia. A gente acha que se houve uma coisa que a gente sentiu como lacuna do programa foi a gente não ter conseguido colocar em um primeiro momento atores negros.”

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Victor Pollak/Divulgação Renata Gaspar, Luana Martau, Marcius Melhem e Marcelo Adnet, em cena de ‘Tá no Ar’

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