Folha de S.Paulo

Adolfinho

Será que conseguimo­s detectá-los e evitar que se transforme­m em facínoras?

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Aconteceu, com certeza, e mais do que uma vez. Os pais, uma ama diligente, a avó, alguém, a certa altura deve ter perguntado: “Adolfinho, o que é que você quer lanchar?”.

E o pequeno Hitler, sorrindo, cansado de brincar, os joelhos cheios de terra, respondeu qualquer coisa que, em princípio, não era sinistra. É difícil acreditar, mas os maiores facínoras da história foram crianças inocentes.

Às vezes, para passar o tempo, alguém considera a seguinte fantasia: “Se você pudesse viajar no tempo, mataria Hitler no berço?”. Mas como é que alguém teria coragem de matar uma criança que, naquela altura, não tinha ainda feito nada?

Muitas vezes me ocorre que isso já aconteceu e o viajante do tempo, não tendo sido capaz de assassinar o jovem Hitler, optou por convencê-lo a usar um bigodinho ridículo, exatamente igual ao da personagem de Chaplin, e voltou para o presente satisfeito, pensando que, assim, ninguém iria seguir aquele idiota.

Depois verificou que tinha se enganado, mas a máquina do tempo deve ter se avariado e o viajante perdeu a oportunida­de de regressar.

Quando se fala em carisma, essa qualidade indefiníve­l que leva as massas a seguirem alguém, a imagem que nos ocorre é a de Brad Pitt, não a de um homúnculo de cabelo seboso e bigodinho ridículo.

De que é feito, então, o magnetismo desses assassinos, e em que momento exato é que eles deixam de ser Adolfinho e passam a ser Hitler?

E será que, olhando à nossa volta, conseguimo­s detectar Adolfinhos e evitar que se transforme­m em Hitlers, poupando o trabalho a viajantes do tempo imaginário­s?

Posso estar a ser paranoico, mas acho que vejo vários em restaurant­es. Adolfinhos e Adolfinhas que gritam, se jogam no chão por causa de legumes, exigem mexer no celular dos pais e baixam aplicativo­s inúteis de modo que, quando os pais retomam o telefone, ele os saúda dizendo: “Olá, Adolfinho. O Pinterest tem coisas novas para você”.

Talvez a polícia devesse monitoriza­r esse tipo de criança, ir acompanhan­do o seu cresciment­o, perceber se estão a escrever uma biografia lunática sobre a sua luta, investigar se ponderam deixar crescer pilosidade­s ridículas. Mas, no mínimo, levá-las do restaurant­e em que eu estiver. Talvez isso não salvasse a humanidade, mas salvaria o meu jantar. Há dias em que me contento com isso.

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Luiza Pannunzio

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