Folha de S.Paulo

Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de 1975

Musical escrito há mais de 40 anos por Chico Buarque e Paulo Pontes ganha nova poética com rap, funk e elenco negro

- Paulo Bio Toledo

TEATRO Gota D’Água {Preta} *****

Itaú Cultural, av. Paulista, 149. dom. (17), às 19h; grátis. CCSP, r. Vergueiro. 1.000. Sex. e sáb., às 20h30, dom., às 19h30; de 8 a 24/3; R$ 30. 14 anos Em certo momento da peça “Gota D’Água {Preta}”, o elenco canta um fragmento de “Quadrilha”, de Chico Buarque, mas logo a canção é atravessad­a pelo funk “Tá Tranquilo, Tá Favorável”, de MC Bin Laden. Mais adiante, os primeiros versos de “Gota D’Água” são secundados pela entrada de um coro que faz da canção um rap de batida marcante.

O procedimen­to com as músicas espelha a posição do grupo diante da peça escrita em 1975 por Chico e Paulo Pontes, versão do mito de Medeia adaptada ao subúrbio do Rio. Texto e canções servem de base para ampliar os significad­os de “Gota d’Água”. O grupo atua como um DJ, manipuland­o samples literários e musicais.

Não por acaso, a obra dos Racionais MC’s é uma presença permanente. O diretor Jé Oliveira já havia se aproximado de Mano Brown e companhia em “Farinha com Açúcar”, uma transposiç­ão para teatro do que há de mais avançado no rap brasileiro: a multiplici­dade de vozes; o objetivida­de cortante da lírica; a expectativ­a de uma periferia coletiva e insubmissa.

Tudo isso reaparece em “Gota d’Água {Preta}”, mais do que um recorte racial para uma peça quase sempre interpreta­da por brancos. Não vemos apenas personagen­s negras, mas outro pensamento sobre a trama e o teatro. Os corpos ali não são só objeto de uma narrativa popular. Eles integram uma estética que amplia o horizonte crítico da peça. Diria Edy Rock, nesta bela referência teatral: “Eu era a carne/ agora sou a própria navalha”.

Com atuações enormes, o elenco justapõe fala e canção, criando uma levada digna dos melhores MCs do rap. Eles atuam em equipe e demarcam sua própria resistênci­a.

A Corina de Aysha Nascimento, a Nenê de Dani Nega, o Jasão de Jé Oliveira e o Creonte de Rodrigo Mercadante iluminam personagen­s que normalment­e ficam à sombra de Joana (interpreta­da aqui com bela sobriedade pela cantora Juçara Marçal). A montagem conecta a exploração que a comunidade da Vila do Meio-Dia sofre com o ato insano de Joana, assassina de seus filhos. E nos faz ver um à luz do outro.

“Gota d’Água {Preta}” inventa uma poética ligada ao rap, aos movimentos negros e a uma cultura periférica que, pouco a pouco, entra no circuito cultural da cidade e traz outros públicos e outras ideias.

“Entrei pelo seu rádio/ Tomei, cê nem viu”, já disse Mano Brown. Com a peça, temos a expectativ­a de vê-la irradiar por outros circuitos, fora do sistema cultural institucio­nalizado, como fizeram os Racionais nos anos 1980 e 90.

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Lenise Pinheiro/Folhapress A cantora Juçara Marçal e o ator e diretor Jé Oliveira como Joana e Jasão em ‘Gota d’Água {Preta}’

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