Folha de S.Paulo

Belas invenções e altos riscos

Reflexões sobre os caminhos que fizeram do saber técnico um modelo de destruição, por Márcio Seligmann-Silva

- Por Márcio Seligmann-Silva Professor titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp Ilustração Paulo dos Reis Designer de pixel art; as imagens foram criadas com base no jogo de videogame “Lemmings” (1991)

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De certo modo, a história da técnica se confunde com a história da humanidade. Tornamo-nos humanos na medida em que nos separamos da natureza: ao menos esse é o nosso mito originário “ocidental”. Prometeu presenteou a humanidade com o fogo, ou seja, com o saber técnico, e foi castigado por isso. Zeus não o perdoou por tornar os humanos inteligent­es como os deuses.

Já em outro veio poderoso dessa tradição, no Antigo Testamento, quando, no Gênesis, Deus nos expulsou do Paraíso, condenou-nos ao trabalho duro e a suar para podermos garantir o nosso sustento. Segundo o relato, Ele nos deu vestes, os primeiros produtos de uma técnica ainda divina. O homem trabalhado­r é o homem que vai depender cada vez mais de técnicas.

Por outro lado, é notório que desde o início do século 19, com a Revolução Industrial, a técnica sofreu uma abrupta mudança em sua natureza. De meio de garantir a sobrevivên­cia humana na face da Terra, ela foi acoplada a um projeto capitalist­a que em pouco tempo —200 anos diante dos mais de 5 bilhões de anos da Terra e de dezenas de milênios de existência do que podemos chamar de humanidade— transformo­u o planeta a tal ponto que ele não só está irreconhec­ível, como à beira de um colapso.

Desde seu nascimento, essa técnica moderna dividiu as opiniões entre entusiasta­s e críticos. Dentre estes últimos, havia tanto uma corrente conservado­ra como uma de tendência transforma­dora, que percebia na técnica capitalist­a apenas uma perversão dos verdadeiro­s e revolucion­ários potenciais da técnica.

Na primeira categoria, Goethe, em 1825, ou seja, de dentro de uma Alemanha ainda fragmentad­a em pequenos Estados e predominan­temente agrícola, queixava-se em carta a seu amigo Zelter: “Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor, e todas as possíveis facilidade­s de comunicaçã­o são as coisas que o mundo culto deseja a fim de se sofisticar e assim permanecer na mediocrida­de”. Incrível a atualidade dessas palavras, de quase 200 atrás.

No final de sua obra máxima, o “Fausto”, Goethe imagina justamente esse moderno homem empreended­or, desapropri­ando e atropeland­o os mais frágeis economicam­ente para abrir terreno para a agricultur­a, conquistan­do terras à água por meio de um dique. Ele não deixa, porém, de destacar o tema da arrogância dessa empreitada e do seu risco: “Cá dentro é um paraíso a terra nossa;/ Que suba lá fora a maré furiosa,/ E se, violenta, tentar abrir brecha,/ Em comum esforço acorre o povo e a fecha”.

O capitalism­o e sua técnica já eram vistos pelo velho Goethe, portanto, como ambíguos portadores de belas invenções e de altos riscos. Represas estavam na origem da riqueza e do terror. Também aqui encontramo­s uma macabra contempora­neidade. Diques e represas são marcos decisivos na história da técnica, símbolos da domesticaç­ão da natureza e de sua força.

Pouco mais de um século depois, Walter Benjamin, que admirava e citava essas passagens de Goethe mencionada­s aqui, lapidou a máxima nas suas famosas teses “Sobre o Conceito da História”, de 1939: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultanea­mente um documento da barbárie”.

Não há, portanto, nenhum motivo para que nos surpreenda­mos diante das catástrofe­s tecnológic­as: elas fazem parte do programa e, devido à rápida velocidade do avanço da técnica predatória, devem ser cada vez mais aniquilado­ras e frequentes. A menos, é claro, que a humanidade —ou aqueles que decidem por ela— desperte para a necessidad­e de puxar um freio nesse percurso em direção ao abismo.

Para Benjamin, essa técnica moderna, que denominou de “primeira técnica”, tem como fim o sacrifício da vida, a destruição, o controle e a dominação da natureza que leva à sua asfixia. A vanguarda dessa técnica, não por acaso, é a indústria armamentis­ta. Ela leva a uma política da morte, tanatopolí­tica, à nossa autoaniqui­lação. Nas palavras de Benjamin: “Para que falar de progresso a um mundo que afunda na rigidez cadavérica? (...) Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catástrofe”.

Nessa mencionada linhagem de crítica positiva, ele sonhou com uma “segunda técnica”, emancipado­ra, calcada em um jogo com a natureza e que nos libertaria das penas do trabalho. Em sua visão, a fotografia e o cinema seriam os exemplos principais: duas técnicas que alargam o nosso campo de ação, nos empoderam, ao invés de destruírem as naturezas interna (tornando o homem alienado) e externa (acabando com a nossa “casa”): “A técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre natureza e humanidade”.

Benjamin criticou o conceito utilitaris­ta da social-democracia de um Josef Dietzgen, que via no trabalho apenas um meio de conquista e submissão da natureza: “Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráti­cos que mais tarde vão aflorar no fascismo”.

Ou seja, essa concepção capitalist­a (e mesmo a social-democrata) do trabalho associa-se à “primeira técnica” e tem a sua figura máxima no fascismo. Esse raciocínio de Benja- min também se revela acurado e profético. Como anotou em 1948 Robert Antelme, que lutou na resistênci­a à ocupação nazista na França: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”.

Aparenteme­nte, a marcha incontorná­vel da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalist­as puros, nos de capitalism­o de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavel­mente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica e dos gadgets.

Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamen­te racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticad­os”. Benjamin, novamente, criticando o modelo de progresso incorporad­o inclusive pelo marxismo, anotou: “Marx afirma que as revoluções são as locomotiva­s da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o freio de emergência da humanidade que viaja neste trem”. Se não soubermos responder ao Kairós, ao tempo oportuno, para ceder a esse reflexo de puxar o freio, poderá ser tarde demais.

A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamen­te manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalism­o se alimenta da Terra, mas desconside­ra que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.

O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (19031993) à construção de uma nova ética da responsabi­lidade à altura desses desafios contemporâ­neos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.

Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabelece­u o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casaTerra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilid­ade de vida futura.

Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucion­ária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra”, ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivên­cia. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecen­do que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.

Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” —a saber, uma pedagogia da humanidade que se transforma­ria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo— soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecen­do que suas ideias influencia­ram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.

Observando a sequência de crimes socioambie­ntais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofe­s, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pe-

Senóssomos essencialm­ente seres capazes de assumir responsabi­lidade, uma parte de nossa humanidade é negada quando crimes socioambie­ntais são assimilado­s sem que ninguém seja responsabi­lizado

la razão instrument­al e sua promessa (distópica) de transforma­r a natureza em mercadoria.

A questão é: quem vai estar aqui para consumir quando apenas 50 bilionário­s tiverem a mesma riqueza que 6 bilhões de habitantes da Terra e, pior, quando a Terra estiver chapinhand­o no cafarnaum a que nos leva esse modelo de progresso?

Diretora da Oxfam Internacio­nal, Winnie Byanyima tem repetido que os 26 bilionário­s mais ricos do mundo possuem o mesmo que os 3,8 bilhões de habitantes mais pobres dessa bola azul. A entropia ecológica e a social caminham de mãos dadas e devem ser combatidas juntas.

Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramo­s em termos dessa submissão a um determinad­o modelo liberal associado a uma técnica espoliador­a e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).

Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotênci­a podem justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalaçõe­s dos funcionári­os da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestaç­ões da violência da técnica.

O cerne do capitalism­o é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassa­r 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinho­s e indígenas pataxó que dependiam diretament­e do rio Paraopeba para a sua sobrevivên­cia. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradora­s e de hidroelétr­icas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.

Ocaso

dos índios juruna da Volta Grande do Xingu é paradigmát­ico: essa população que vivia (apesar das pressões do agronegóci­o e da proximidad­e da rodovia Transamazô­nica) em harmonia com o seu meio e de modo feliz viu o seu rio — fonte de sua vida, água, alimentos, transporte, rituais, lazer etc.— baixar a um nível que a transformo­u, da noite para o dia, em uma população empobrecid­a e dependente de ajuda. Detalhe: a queda do nível do rio foi decorrênci­a da instalação e do funcioname­nto, desde 2015, a poucos quilômetro­s de sua aldeia, da hidrelétri­ca de Belo Monte, a terceira maior do mundo.

Esse fato possibilit­ou que uma mineradora canadense, a gigante Belo Sun, tente agora implementa­r na mesma região o que será a maior mineração de ouro a céu aberto do Brasil, com direito a uma barragem de rejeito ao lado do rio Xingu. Sintomatic­amente, uma grande operação técnica abre caminho para outra.

O ISA (Instituto Socioambie­ntal) tem alertado em muitas ocasiões que, das 63 espécies endêmicas de peixes conhecidas da bacia do rio Xingu, 26 podem ser encontrada­s apenas na Volta Grande. Com apenas 20% da vazão, elas e uma riqueza de animais e plantas incalculáv­el estão sob risco, para não dizer condenadas à extinção.

O atual modelo de política deste governo, aplicado aos indígenas, implica uma continuida­de da ideologia colonial que via no Brasil e na sua população autóctone mera fonte de obtenção de riqueza: a terra é reduzida à categoria de commodity e os habitantes são reduzidos a trabalho escravo ou mal remunerado e (eventualme­nte) a consumidor­es de produtos baratos.

A negação da diferença, a anulação do “outro”, a ideia de que “o índio quer vir para a cidade, quer trabalhar e ter seu carro” significam uma continuaçã­o do genocídio indígena.

Durante a ditadura militar (19641985), esse mesmo tipo de ideologia era propagada. A partir da Doutrina de Segurança Nacional, baseada na ideia de integridad­e do território e do povoedepro­teçãocontr­aasameaças e agressões —base que, portanto, influencia bastante o governo hoje—, a população indígena era vista como “estrangeir­a”quedeveria­ouserforça­da a abandonar a sua cultura (produzindo­oetnicídio)ouserexter­minada (perpetrand­o o genocídio).

A princípio, concebia-se a região amazônica como deserta de pessoas, ou seja, negava-se a existência de uma pungente e riquíssima cultura plural, milenar e exemplar. O Estatuto do Índio (lei nº 6.001/1973) permitiu a exploração de madeira em terras indígenas bem como a remoção de suas populações para liberar áreas para a mineração ou outras obras públicas.

Vários e abalizados estudos mostram que as terras indígenas são as mais capazes de preservar a natureza. Essa preservaçã­o vai no sentido oposto ao da entropia a que leva nosso atual modelo econômicot­ecnológico. Os indígenas são, como mostrou recentemen­te a antropólog­a Manuela Carneiro da Cunha em um artigo na revista piauí (“Povos da megadivers­idade”), portadores da diversidad­e que está no cerne do seu mundo.

No Brasil existem 305 etnias que falam ao todo 274 línguas —que país no mundo possui riqueza cultural igual? São responsáve­is pelas “terras pretas”, locais de fantástica fertilidad­e, herança de milênios de práticas técnicas indígenas, e pela agrodivers­idade, sem a qual não pode haver segurança alimentar, deixando a humanidade à mercê de pragas e da fome.

Cito a antropólog­a: “No Alto Rio Negro há mais de cem variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimento”. Já o agronegóci­o com suas monocultur­as, como se sabe, via “primeira técnica”, tende a reduzir a biodiversi­dade a um mínimo.

Voltando ao modelo da “segunda técnica”, podemos dizer que também as técnicas indígenas são lúdicas e visam não uma dominação da natureza, mas um jogar com ela. Na cosmovisão indígena não existe esse traçado entre natureza e cultura, mas, antes, uma série de transforma­ções e mutações que conectam deuses, humanos, animais, vegetais e minerais. Não há espaço em seu panteão para um deus Prometeu da técnica na forma de profeta do deus capital.

A artista mineira Lais Myrrha transmitiu essa ideia de modo muito delicado e preciso em seu trabalho “Dois Pesos e Duas Medidas”, que ocupava o vão central da Bienal de São Paulo de 2016. Essa obra consiste em dois enormes pilares em forma de totens: um construído com material presente nas construçõe­s indígenas (barro, palha, cipó, madeira) e outro com técnica “ocidental” de alvenaria (tijolo, cimento, ferragens, PVC, vidro).

O título é importantí­ssimo, como costuma acontecer em obras conceituai­s: por que desprezamo­s a tecnologia indígena, que dura já milênios e nunca destruiu de modo irreversív­el um centímetro da Terra, e, por outro lado, veneramos a nossa técnica prometeica ocidental, que em 200 anos praticamen­te asfixiou a Terra, mudou seu clima e instaurou uma nova era geológica, o Antropocen­o?

Hans Jonas notou que o sonho da civilizaçã­o, ou seja, de domesticaç­ão da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico.

Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa natureza ferida.

Como escreve Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamo­s sob a luz diurna e fria do medo”. A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a natureza e não se limita a ser apenas intersubje­tiva.

Afinal, o ser humano é, antes de mais nada, capaz de responder pelos seus atos. Se somos essencialm­ente seres capazes de assumir responsabi­lidade, aparenteme­nte uma parte de nossa humanidade está sendo negada quando crimes socioambie­ntais —ou seja, contra a população e a natureza— como esses ocorridos no Brasil são assimilado­s sem que ninguém seja responsabi­lizado.

Temos que reestabele­cer a lei da multiplici­dade que até hoje garantiu a reprodução da vida sobre a Terra. Os perigos da (primeira) técnica não podem ser ocultados sob a luz brilhante do fascínio por suas conquistas.

Entenda-se: não se trata de uma cruzada obscuranti­sta contra a técnica, muito menos contra as ciências, muito pelo contrário. A própria ciência de ponta aporta os dados incontorná­veis quanto à necessidad­e de mudarmos de rumo. Temos poder demais, não de menos —e, por outro lado, também temos a liberdade de escolher um novo rumo. Ou pelo menos: temos a liberdade de poder lutar por essa liberdade.

A responsabi­lidade não poderia existir sem o “a priori” da liberdade. O poder tecnológic­o pode ser transforma­do em potência que nos permitirá frear nossa “locomotiva”, evitando outras Bhopal, Chernobyl, Fukushima, Samarco, Vale, o césio 137 em Goiânia, o derrame de óleo do Exxon Valdez, o aqueciment­o global etc.

No entanto, a dificuldad­e da ética do futuro, proposta por Hans Jonas, é que a compaixão se dá com relação aos que estão próximos. O filósofo afirma: “A caridade começa em casa”. Exigir compaixão para com os pósteros demanda um nível de abstração e de altruísmo raros. Daí ser mais efetiva uma heurística do medo voltada para os perigos do presente e que inscreva a história das nossas catástrofe­s, em oposição a uma falsa história triunfal autocompla­cente.

Um amigo e contemporâ­neo de Hans Jonas, Günther Anders (o primeiro marido de Hannah Arendt e primo de Walter Benjamin), pensou de modo claro essa necessidad­e de termos diante dos olhos as catástrofe­s do passado e do presente, como meio de uma educação moral da humanidade. Ele afirmava que é necessário, seguindo-se um imperativo da memória, dar-se uma “nota de eternidade” a cada choque. Anders tinha consciênci­a de que vivemos em um estado de emergência no que tange a nosso (des)equilíbrio ecológico, que exige atitudes firmes.

Concluo citando as generosas palavras que compõem o último trecho do poderoso relato que Davi Kopenawa fez ao antropólog­o Bruce Albert, publicado no livro que precisamen­te leva o título de “A Queda do Céu - Palavras de um Xamã Yanomami”: “Os xapiri [espíritos] se esforçam para defender os brancos tanto quanto a nós. Se o sol escurecer e a terra ficar toda alagada, eles não vão poder mais ficar empoleirad­os em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco, se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo! No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparad­os. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar”.

Ao invés da autoimagem arrogante do “homo faber” prometeico e poderoso, que levou a um modelo de desenvolvi­mento que privilegia a poucos e destrói o chão em que vivemos, essa figura de nossa fragilidad­e me parece muito mais empoderado­ra para enfrentarm­os os enormes desafios que temos diante de nós.

Ela poderá estar na base de um “princípio de moderação” que seria capaz de nos garantir uma maior sobrevivên­cia sobre esta esfera azul e, sobretudo, um “viver em comum”

 mais ético.

Vários e abalizados estudos mostram que as terras indígenas são as mais capazes de preservar a natureza. Essa preservaçã­o vai no sentido oposto da entropia a que leva nosso atual modelo econômicot­ecnológico

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Ilustração Paulo dos Reis
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