Espírito trágico contra alucinação coletiva, por Bernardo Carvalho
Esquerda precisa incorporar espírito trágico para romper com alucinação coletiva
Pode ser uma tentação combater um populismo com outro. O caminho parece curto e natural, mas leva sempre aos piores equívocos.
O problema das artes contemporâneas não são os intelectuais (um dos bodes expiatórios preferidos dos populismos), mas o oposto do que se espera de uma atividade reflexiva: sua redução a convenções e proposições aceitáveis, ilustrações do lugar-comum, reprodução de discursos mais ou menos domesticados e consensuais.
Intelectual de esquerda, crítico e professor emérito de história da arte na Universidade da Califórnia em Berkeley, o inglês T.J. Clark entende que há de fato um problema com as es- querdas hoje, mas não o identifica a um elitismo nas artes.
No recém-publicado “Heaven on Earth – Painting and the Life to Come” (“o céu na Terra – a pintura e a vida por vir”), ele analisa obras de Giotto, Brueghel e Picasso, entre outros, para tentar compreender a encrenca política em que nos metemos.
Um dos fatores da crise estaria na tendência natural de não querermos ser contrariados, exacerbada até as raias do infantilismo pela combustão inédita de elementos psicossociais e tecnologia digital nas últimas décadas, da qual os populismos de direita souberam tirar o melhor proveito.
Clark se pergunta por que as desigualdades sociais e econômicas do capitalismo dos últimos 40 anos desembocaram em movimentos de direita e políticas de ressentimento. A resposta, segundo ele, estaria não só na recusa do público mas da própria esquerda em encarar as contradições.
O crítico vai buscar na pintura a representação silenciosa de um mundo com os pés no chão, menos vulnerável às promessas e aos ideais dos discursos épicos e religiosos nos quais hoje estamos enredados.
Clark mostra que, mesmo na Idade Média, quando o poder da religião era hegemônico e imperativo, a pintura de Giotto ainda assim representava na sua mudez o espaço da dúvida, da desconfiança e da descrença, o mundo terreno contra as idealizações celestes.
O elemento trágico, com os desejos e fracassos de corpos submetidos à gravidade, contradiz as promessas heroicas do discurso épico.
As consequências do narcisismo suicida (a indiferença pelo real e pelo outro na obstinação em realizar suas vontades) promovido a modelo por esse discurso estão representadas no destino trágico de Ícaro, pintado tanto por Brueghel como por Picasso.
É esse espírito trágico (um materialismo desencantado, capaz de encarar as contradições e os limites do real) que as esquerdas precisam incorporar se quiserem romper com o processo de infantilização e de fantasia consumista que