Folha de S.Paulo

Aracy Balabanian e as fotografia­s guardadas no bolso do pai armênio

“Ao sair de uma comédia de Goldoni aos 12 anos, tive a sensação de ‘é aqui que eu vou ficar’”

- A obra que marcou Aracy Balabanian Atriz, integra o elenco do filme ‘Sai de Baixo’, que estreia na quinta (21) Depoimento a Walter Porto

Meu pai era um imigrante armênio semianalfa­beto que fugiu da guerra aos 14 anos e aprendeu tudo de forma autodidata. Em Campo Grande (MS), onde nasci, ele obrigava os filhos todos a lerem jornal. E eu, querendo imitar tudo que meus seis irmãos mais velhos faziam, pegava alguns cadernos para ler também.

Eu sempre lia a seção de arte, talvez por ser mais fácil, em especial a coluna do Sábato Magaldi sobre teatro, no Estado de S. Paulo. E, naquele tempo, tudo o que eu conhecia da arte de representa­r era o circo. Ia aos espetáculo­s e ficava esperando a parte final, que chamava de “draminha”, uma encenação breve.

Quando eu tinha cerca de dez anos, minha família se mudou para São Paulo, e eu insistia muito com as minhas quatro irmãs para ir ao teatro pela primeira vez. Não importava a peça. Elas finalmente aceitaram me levar —e só uma delas entrou comigo, porque era caro— para ver a comédia “Mirandolin­a”, do italiano Carlo Goldoni, no Teatro Maria Della Costa.

Lembro a cena de eu entrando no teatro pela primeira vez. Eu estava já com 12 anos —ou seja, passei mais de ano pedindo para ir a uma peça— e, ao subir as escadas, me deparei com aquele espaço deslumbran­te.

Já tinha ido ao cinema nesse tempo de São Paulo, mas entrar naquele Cine Metro da avenida São João era um arranca-rabo. Fui quase linchada uma vez na sessão das 16h, com um mar de gente me prensando para entrar na hora em que o filme começou. O teatro era uma coisa mais chique.

Fiquei fascinada com “Mirandolin­a”. A montagem era belíssima, parte de uma renovação do teatro brasileiro por encenadore­s italianos, com ecos de commedia dell’arte. Pude entender melhor o porquê de eu gostar tanto do circo, que na minha cidade era tão precário, mas que guardava relação com esse tipo de espetáculo. Fato é que, ao sair de Goldoni, tive aquela sensação de “é aqui que eu vou ficar”.

A partir dessa descoberta, comecei a ver mais peças. Costumava fazer cadernos inteiros com recortes de críticas de jornal —me apaixonei por uma atriz chamada Nathalia Timberg e colava tudo o que ela fazia—, e, angustiada porque só se podia entrar em escolas de teatro com 18 anos, puxava meus professore­s de latim e português para falar de dramaturgi­a.

Até que, alguns anos depois, Augusto Boal foi fazer uma conferênci­a no meu colégio. Já tinha visto umas cinco vezes a peça “Ratos e Homens”, de John Steinbeck, que estava em cartaz e era a primeira direção de Boal no Teatro de Arena.

Ele notou que eu estava muito interessad­a e me sugeriu fazer um teste no Arena, para o Teatro do Estudante. Nessa época, meados dos anos 1950, estavam se profission­alizando ali nomes como Gianfrance­sco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Vera Gertel, e não queriam deixar morrer o teatro amador feito lá.

Não tive a menor dúvida e fui. E quem era a belíssima mulher que conduzia os testes? Beatriz Segall. Eu estava alucinada, em meio a pessoas que acompanhav­a de perto no teatro, como mesmo Guarnieri e Vianinha.

Passei no teste e comecei a ensaiar na casa da Beatriz. Foi ali que começou minha vida. Minha primeira peça com direção dela, protagoniz­ando um texto de Artur de Azevedo, como reunia todos esses nomes importante­s do teatro amador, já atraiu toda a intelectua­lidade.

Alguns domingos depois, Décio de Almeida Prado escreveu uma crítica sobre a peça que dizia: “Ontem nasceu uma estrela”. Parece até conto da carochinha. Houve uma reunião do Arena para ratificar as impressões do meu deus, Décio, e nesse dia vi lágrimas nos olhos da Beatriz, que me encheram de emoção, vaidade e certo medo.

Porque eu sabia o que ia enfrentar com meu pai —não que ele fosse bobo ou preconceit­uoso, mas por sua origem: na comunidade armênia, todo mundo se metia muito na vida uns dos outros.

Intensifiq­uei meus estudos, tanto por orientação da grande intelectua­l que era Beatriz quanto para poder justificar a meu pai a entrada na Escola de Arte Dramática —que fiz em paralelo a ciências sociais na USP. Como comecei muito cedo e tive uma luz me guiando pelos caminhos e pelas pessoas certas, já na faculdade os colegas me conheciam.

Mesmo assim, o sofrimento na relação com meu pai foi grande. Quando fui para a televisão, ele fingia que não via. Eu quis que ele fosse ver “Os Ossos do Barão”, de Jorge Andrade, um dos meus primeiros espetáculo­s, porque era a história de um imigrante. Até acho que ele foi, mas morreu sem me dizer.

Minha estreia na TV foi com “Antígona”, de Sófocles, uma peça transmitid­a como um especial de final de ano. Ela foi tão bem que nos convidaram a fazê-la no Municipal. Essa foi a primeira vez que sei que meu pai me viu no palco.

Ele foi levando minha mãe, que estava doente, e nunca confessou isso para mim. Foi ela quem me disse: que enquanto eu era aplaudida em cena aberta, ele se virava para ela e dizia “olha, é sua filha”.

Durante uma das nossas maiores brigas, ele chegou a me ameaçar dizendo que eu nunca seria uma atriz do nível de um Sérgio Cardoso. Até que ele me viu fazendo novela com o próprio Sérgio Cardoso. Aí ele entregou os pontos.

Meu pai faleceu durante essa mesma novela, “Antônio Maria”. E, nos seus bolsos, havia fotografia­s minhas autografad­as, que depois soube que ele distribuía feito cabo eleitoral.

 ?? Acervo Última Hora/Folhapress ?? A atriz com Sérgio Cardoso na novela “Antônio Maria”, da TV Tupi, em 1968
Acervo Última Hora/Folhapress A atriz com Sérgio Cardoso na novela “Antônio Maria”, da TV Tupi, em 1968

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