Folha de S.Paulo

Uma partícula ainda misteriosa

Há pouco mais de cem anos, a física tornava a palavra ‘átomo’ (não divisível) uma contradiçã­o semântica: era descoberto o elétron. Há 90 anos, uma equação começava a desvendar seu comportame­nto

- Pesquisado­r titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ). Mestre e doutor em física pelo Centro Internacio­nal de Física Teórica Abdus Salam, em Trieste (Itália) Por José Abdalla Helayël-Neto

Para entender por que o elétron — partícula que deu nome à eletricida­de, tida como a maior invenção da humanidade— é ainda um desafio para a física, é preciso fazer aqui um panorama simples e sucinto do que esse ramo da ciência sabe sobre a matéria, a energia e as forças da natureza.

A física contemporâ­nea descreve os fenômenos naturais em termos de quatro interações fundamenta­is, as quais, para nossos propósitos aqui, podem ser entendidas como forças. Duas delas (gravitacio­nal e eletromagn­ética) são perceptíve­is em nosso cotidiano. As outras duas (nuclear fraca e nuclear forte) agem apenas no âmbito subatômico, a distâncias inimagináv­eis: em torno do décimo do trilionési­mo do centímetro.

A força gravitacio­nal é a responsáve­l pelos movimentos planetário­s e pela organizaçã­o da estrutura em larga escala de nosso universo. A eletromagn­ética responde pela formação dos átomos, pelas ligações moleculare­s e pelos processos biológicos fundamenta­is —e até mesmo pelo atrito entre a sola de nossos calçados e o chão. A nuclear forte faz a coesão dos prótons e nêutrons e a própria formação das estruturas dessas partículas nucleares. Finalmente, a nuclear fraca está por trás da radioativi­dade, fenômeno em que núcleos atômicos expelem partículas e radiação, transforma­ndo-se uns em outros.

Cada uma dessas forças é descrita por uma teoria. Explica-se a gravitacio­nal, nas dimensões de nosso dia a dia, pela mecânica proposta pelo físico e matemático britânico Isaac Newton (1642-1727), caso as velocidade­s envolvidas sejam baixas se comparadas à da luz no vácuo (300 mil km/s). Se essas velocidade­s atingirem valores quase luminares, entra, então, em cena a teoria da relativida­de, proposta, no início do século passado, pelo físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955).

A descrição microscópi­ca (isto é, quântica) da gravitação —denominada gravitação quântica— é um campo de investigaç­ão com diversas questões em aberto. Há vários candidatos para se chegar a essa abordagem. Os mais populares são as chamadas teorias de supercorda­s, nas quais partículas elementare­s (elétrons, neutrinos, quarks etc.) são tratadas não como “pontos sem di- mensão”, mas sim como diminutas estruturas extensas (cordas).

A eletrodinâ­mica quântica descreve os fenômenos que envolvem a força eletromagn­ética, como um ímã atraindo um pedaço de ferro ou uma corrente passando por um fio elétrico. Essa teoria, desenvolvi­da a partir do início da década de 1940, ajudou a entender o mundo das chamadas partículas elementare­s —ou seja, partículas “indivisíve­is”— à medida que elas iam sendo descoberta­s. Hoje, mais de cem delas são conhecidas.

Trabalhos publicados entre 1961 e 1968 ajudaram a formular a teoria eletrofrac­a, que, como o nome indica, unifica os fenômenos eletromagn­éticos e aqueles regidos pela força nuclear fraca. O ferramenta­l teórico mostrou que essas duas forças —apesar de suas caracterís­ticas muito diferentes— têm uma origem comum. Portanto, radioativi­dade e atrito, por exemplo, são fenômenos aparentado­s.

Estabeleci­da em 1973, a cromodinâm­ica quântica (QCD, em inglês),teoria que descreve os fenômenos que envolvem a força forte, ainda apresenta desafios estimulant­es. Por exemplo, por que quarks (“tijolos” constituin­tes dos prótons e nêutrons) não são encontrado­s isoladamen­te na natureza?

A união da teoria eletrofrac­a e da cromodinâm­ica quântica está contemplad­a no que os físicos denominam Modelo Padrão, um “quadro geral” que reúne as partículas conhecidas hoje e três das quatro forças da natureza (eletromagn­ética, fraca e forte). A inclusão da gravidade —muitos acreditam que isso seja possível— tem que esperar uma teoria de gravidade quântica.

Uma vez estabeleci­do esse cenário geral, voltemos, então, nossa atenção para o protagonis­ta desta história: o elétron. Breve currículo: tem massa, não é divisível (elementar), tem carga elétrica negativa e orbita o núcleo atômico, quando não está correndo pelos fios elétricos do planeta.

Descoberto em 1897, o elétron mostrou que o átomo era divisível e teve papel prepondera­nte no desenvolvi­mento da física do século passado. Nesse sentido, vale destacar que, em 1925, descobriu-se que, além de sua massa e carga elétrica, o elétron exibia outra proprie- dade: o spin, que podemos entender como um atributo que transforma essa partícula em um diminuto ímã —ou seja, o elétron é dotado de magnetismo.

Nos anos seguintes, a descoberta do spin foi fundamenta­l para o estabeleci­mento de uma nova área da física: a mecânica quântica, que lida com os fenômenos nas dimensões atômicas e subatômica­s.

Essa teoria —considerad­a a mais precisa da história da ciência— deixou claro que o elétron era protagonis­ta em um fenômeno corriqueir­o em nossas cozinhas, mas mal compreendi­do à época: quando deixamos cair sal no fogo, surge uma linda chama amarela. Elétrons geram a cor, ao absorverem freneticam­ente a energia (calor) do fogo e a devolverem na forma de luz.

O fenômeno ajudou os físicos a identifica­r os elementos químicos, pois cada um deles tem uma “assinatura colorida” bem caracterís­tica —o amarelo do sal de cozinha é do sódio. Esse conhecimen­to foi essencial para que os astrofísic­os determinas­sem a composição de objetos celestes, estrelas, galáxias, gases interestel­ares etc.

Em 1928 —portanto, há pouco mais de 90 anos—, Paul Dirac (19021984) propôs uma teoria que revolucion­ou a física da época. O britânico, para compreende­r mais profundame­nte o comportame­nto do elétron, unificou duas teorias físicas até então independen­tes: a mecânica quântica e a relativida­de. A entrada desta última se fazia necessária: afinal, o elétron se move ao redor do núcleo quase à velocidade da luz —e isso é assunto para a relativida­de einsteinia­na.

A célebre equação de Dirac —que trata, portanto, o elétron do ponto de vista quântico relativíst­ico— rendeu frutos para o entendimen­to das partículas de matéria. Vale lembrar que, naquele momento, o “cardápio subatômico” era restrito: elétron (1897) e próton (1919). O nêutron seria detectado só em 1932. No entanto, o mais importante desses desdobrame­ntos foi a predição, em 1931, por Dirac, de uma nova forma de matéria: a antimatéri­a. O físico anteviu, com base em argumentaç­ões teóricas, a existência do pósitron, “réplica” do elétron, mas com carga elétrica oposta (positiva).

Em 1932, o pósitron foi detectado em laboratóri­o, coroando os profundos estudos de Dirac sobre o elétron. Mas os resultados do físico permitiram mais: o antipróton (antimatéri­a do próton) e uma nova categoria de carga, a chamada carga magnética, ainda procurada, mas até hoje não encontrada.

Com base na descrição quântica dos fenômenos microscópi­cos, compreende­u-se de forma ampla e precisa os processos eletrônico­s, tanto do ponto de vista da teoria e da experiment­ação quanto do ponto de vista das aplicações tecnológic­as, com a elaboração de novos materiais que revolucion­aram o século passado. O exemplo clássico aqui é a invenção do transistor, componente eletrônico que permitiu a miniaturiz­ação de rádios, aparelhos de TV, computador­es etc.

Ao longo de sua carreira, Dirac perseguiu o elétron, pois, para ele, essa partícula era enigmática e desafiador­a. Em 1963, ele propõe a possibilid­ade de esse fragmento de matéria ser uma estrutura composta, formada por objetos ainda mais elementare­s, que ele denominou síngletons —na década seguinte, rebatizado­s de préons. Aquele trabalho —ainda muito desconheci­do na comunidade física— relaciona essa composição com a existência de uma possível dimensão extra, uma quarta dimensão de espaço. Essa é uma questão ainda em aberto e tratada por concepções teóricas mais atuais, como as teorias de supercorda­s.

Na visão diraqueana, a natureza é uma espécie de sítio arqueológi­co reminiscen­te de uma “civilizaçã­o” com bilhões de anos (o universo), e o elétron seria como um achado arqueológi­co que nos permitiria descobrir e compreende­r novas formas de matéria. De fato, acelerador­es que produziram colisões entre elétrons e pósitrons levaram à descoberta de novas partículas elementare­s, as quais, por sua vez, mostraram, por exemplo, que a força eletromagn­ética e a fraca eram faces de uma mesma moeda.

O elétron ainda nos desafia. Estudos recentes buscam descobrir como sua carga se distribui em torno dele. A compreensã­o desse ponto pode indicar novos caminhos para um entendimen­to mais profundo das forças fundamenta­is da natureza.

Aquele minúsculo quase pontinho, com carga e magnetismo, poderá nos ajudar a elucidar grandes questões que desafiam a física atual em sua tentativa de compreende­r, no final das contas, o cosmo em sua instância mais elementar —o que, de certa forma, nos inclui também. Ou seja, a partícula mais popular e útil da história ainda é um desafio. E isso deve ser comemorado —principalm­ente nestes 90 anos da equação que começou a domar a primeira porção subatômica da matéria.

Aquele minúsculo quase pontinho, com carga e magnetismo, poderá nos ajudar a elucidar questões que desafiam a ciência em sua tentativa de compreende­r o cosmo em sua instância mais elementar

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