Folha de S.Paulo

Governo cria comissão para fazer análise ideológica do Enem

Comissão fará revisão de questões do exame nacional, criticado por Bolsonaro

- Paulo Saldaña Anna Virginia Balloussie­r e Paulo Saldaña

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is) nomeou nesta quarta-feira (20) comissão para fazer uma avaliação ideológica das questões do Enem 2019. A comissão terá apenas dez dias para a conclusão dos trabalhos. A criação do grupo foi noticiada em fevereiro.

O governo Jair Bolsonaro (PSL) decidiu criar a comissão com o principal objetivo de expurgar itens que abordem uma suposta “ideologia de gênero”, termo nunca usado por educadores.

Na portaria do Inep, órgão do MEC (Ministério da Educação) responsáve­l pelo Enem, a comissão fará uma “leitura transversa­l” das questões que compõem o Banco Nacional de Itens com o objetivo de verificar “sua pertinênci­a com a realidade social, de modo a assegurar um perfil consensual do Exame”.

A portaria não descreve quais os critérios para a análise; diz apenas que a matriz do Enem deve ser observada.

O grupo poderá recomendar a não utilização das questões. A Diretoria de Avaliação de Educação Básica do Inep poderá fazer um recurso por questão, mas a palavra final é do presidente do órgão, Marcus Vinicius Rodrigues.

Farão parte da comissão três pessoas: o secretário de Regulação e Supervisão da Educação Superior do MEC, Marco Antônio Barroso Faria, o diretor de estudos educaciona­is do Inep, Antônio Maurício Castanheir­a das Neves, e o representa­nte da sociedade civil Gilberto Callado de Oliveira, procurador de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina.

Eles terão que assinar um termo de sigilo. Os trabalhos da comissão ocorrerão na sala segura do Inep.

Essa é a primeira medida oficial do governo para interferir em conteúdos educaciona­is. O Enem é porta de entrada para quase todas as universida­des federais. Na última edição, 5,5 milhões de jovens e adultos se inscrevera­m no exame. Na posse como ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez criticou o que chama de “ideologia de gênero”.

O próprio Bolsonaro catapultou sua carreira política atacando o tema da sexualidad­e. Segundo ele, haveria ações nas escolas de estímulo à sexualizaç­ão precoce.

O Banco Nacional de Itens é formado por questões que passam por rigoroso processo de produção. Uma única questão prevê dez etapas, que envolvem desde o treinament­o de professore­s até o pré-teste dos itens e revisão por parte de especialis­tas. O processo envolve alto gasto de dinheiro público. O Inep afirma que nenhum item será descartado.

“As questões dissonante­s serão separadas para posterior adequação, testagem e utilização, se for o caso. Todo o trabalho respeitará a Matriz de Referência do Enem, os parâmetros para garantir o cálculo das proficiênc­ias, o equilíbrio da prova com a de edições anteriores e a segurança. Os participan­tes podem ficar tranquilos, pois nada disso afetará seu desempenho e suas oportunida­des de acesso à Educação Superior”, explica Marcus Vinícius.

Uma questão do Enem 2018 citava um dialeto utilizado por gays e travestis. “Uma questão de prova que entra na dialética [sic], na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimen­to nenhum. A não ser obrigar para que no futuro a garotada se interesse mais por esse assunto”, disse Bolsonaro.

Em 2015, a prova trouxe uma citação da filósofa francesa Simone de Beauvoir, o que foi considerad­o tentativa de doutrinaçã­o pelo então deputado Bolsonaro.

Segundo educadores, a abordagem de questões de gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescênc­ia, violência contra a mulher, machismo e homofobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l da ONU. Vélez. Todo mundo sabe que ele está na berlinda... Eu disse que não iria a reunião alguma sem antes falar com o 01”, diz Marco Feliciano (Pode-SP), referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Lincoln respalda a versão do MEC e diz que “quem fala em nome da bancada sou eu”, e não Feliciano. O convite, segundo ele, foi feito por assessores legislativ­os do ministério. “A reunião com o ministro foi apenas adiada”, afirma.

Quando virou ministro, Vélez fez um mosaico no MEC com pessoas do ITA, do Centro Paula Souza e ligadas a Olavo. Não construiu, contudo, nada com evangélico­s, uma reclamação interna do grupo.

A pasta chegou a anunciar uma evangélica para a secretaria-executiva, Iolene Lima, mas a nomeação não saiu. Ela ocuparia a vaga de Luiz Antonio Tozi, desafeto de olavistas.

Iolene não foi bem vista pelos discípulos do escritor, que alegam que ela já estava no MEC sob bênção de Tozi, e pelos evangélico­s, que não a considerav­am parte de sua cota.

Oficialmen­te, a bancada defende que não haja indicações em seu nome para um eventual posto no ministério. Nos bastidores, contudo, há movimentos para lutar em prol de três possíveis substituto­s. Um deles é o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que na eleição ganhou apoio de pastores reunidos na Frente Cristã em Defesa da Família.

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