Folha de S.Paulo

Do médico ao juiz

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Em um sistema funcional de saúde, os cidadãos recorrem a serviços públicos, à rede privada ou a uma combinação das duas opções. No Brasil, cada vez mais, eles procuram também o Poder Judiciário.

Pesquisa inédita feita por encomenda do Conselho Nacional de Justiça mostra que, na década de 2008 a 2017, ações contra o SUS e contra planos privados —o que se chama de judicializ­ação da saúde— aumentaram 130%.

No último ano da série, contaram-se quase 100 mil casos. No período, o cresciment­o do volume total de processos foi de 50%.

Chama a atenção no estudo, coordenado por Paulo Furquim de Azevedo, a variação regional dos tipos de pedido. Em São Paulo, por exemplo, 82% dos processos são contra planos de saúde e prevalecem demandas por medicament­os ou procedimen­tos não previstos no SUS nem no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementa­r.

Já no Pará a maior parte das ações relativas a medicament­os busca acesso a drogas que o SUS, em tese, já disponibil­iza para toda a rede. Isso significa que, ao menos em algumas regiões, apenas organizar melhor o sistema já bastaria para reduzir o recurso aos tribunais.

A judicializ­ação é nociva sob diversos aspectos. No setor público, reduz a capacidade de autoridade­s eleitas de decidir que prioridade­s merecerão as verbas de um orçamento necessaria­mente finito.

Há alguma controvérs­ia em torno dos números, mas se estima que processos nas esferas municipal, estadual e federal atinjam nada modestos R$ 7 bilhões anuais.

Na área privada, o impacto recai sobre os custos. Além de já remunerar um exército de profission­ais de saúde, os planos precisam pôr em sua conta —que será repassada ao consumidor— uma legião de advogados e encargos processuai­s.

A própria operação das empresas fica mais arriscada, uma vez que a criação, por juízes, de obrigações que não estavam previstas em contrato torna os cálculos atuariais menos precisos.

Obviamente, não se pode impedir ninguém de procurar a Justiça. Muitas vezes é a única forma de obter acesso a drogas comuns e procedimen­tos simples que só não estão à sua disposição por uma combinação de ineficiênc­ia e descaso.

Outras tantas, porém, o paciente se ampara em ilusões, eventualme­nte semeadas por médicos e laboratóri­os interessad­os em lucrar.

Diante do quadro, cabe oferecer aos magistrado­s apoio especializ­ado para que possam tomar decisões mais técnicas do que emocionais. A saúde deve ser tratada em consultóri­os e hospitais —e apenas subsidiari­amente em escritório­s de advocacia e fóruns.

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