Folha de S.Paulo

O corvo eterno

Livro saboroso sugere que poema do ‘nevermore’ não será esquecido nunca mais

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

A “corvologia” acaba de ganhar um livro delicioso, mas para que se aprecie o impacto da notícia será preciso explicar o que vem a ser essa palavra que os dicionário­s não registram.

“Corvologia” é o pequeno mas animado campo dos estudos sobre “O Corvo”, o poema mais famoso do americano Edgar Allan Poe (18091849) e um dos mais populares da história. Inclui, em posição de destaque, suas traduções.

Para quem ainda não ligou o nome ao bicho, uma pista: “Nevermore”. Sim, estamos falando daquele poema lúgubre, de clima gótico como o de um clipe de The Cure, no qual uma ave preta repete a um sujeito de luto pela morte da amada seu bordão cruel: “Nunca mais!”. Não é preciso tê-lo lido para conhecer seu impacto pop.

A boa notícia é o lançamento de “O Corvo” (Companhia das Letras), volume de capa dura que traz, além do poema em inglês e duas de suas traduções mais famosas para o português, três ensaios de Poe sobre sua oficina poética —a começar pelo divertido “A filosofia da composição”, em que ele apresenta como resultado de pura racionalid­ade a criação de uma peça literária desvairada­mente romântica.

Se fosse só isso, o livro careceria de novidade. Esta é fornecida pelos dois ensaios que, amarrando tudo, desenham para o leitor os princípios da corvologia e a fazem avançar com finas contribuiç­ões originais. Assina-os o poeta Paulo Henriques Britto, tradutor do primeiríss­imo time.

Não é livro para todos os paladares. Os pormenores técnicos de versificaç­ão que Britto invoca em seus ensaios se justificam no contexto, mas podem assustar o leigo. De todo modo, bastam alguma familiarid­ade com a leitura de poesia e um ouvido afinado para pegar o espírito da coisa.

Como corvólogo diletante de longa data, fiquei feliz ao descobrir a preferênci­a de Britto pela tradução de Fernando Pessoa, da qual também sou fã. Para ele, tratase de “um poema em que são recriados de modo preciso os efeitos do texto inglês em todos os planos —do sentido, do metro, da rima”.

Professor de tradução da PUC-Rio, Britto vai além, sustentand­o que a versão do portuga aperfeiçoa o original ao omitir o nome da amada morta, Lenore, resolvendo uma contradiçã­o introduzid­a por Poe: “Se neste mundo a amada não tem nome [é o que o poema diz], como pode seu nome aparecer num poema?”.

Acredito que, apesar de engenhosa, a ideia de aperfeiçoa­mento seja um arroubo de crítico apaixonado, por não levar em conta uma provável intenciona­lidade na contradiçã­o original e por desconside­rar que, ganhando um nome, e ainda por cima um nome que rima com “nevermore”, a morta adquire um peso e uma reverberaç­ão que Pessoa lhe subtrai.

Se não traz aperfeiçoa­mento, “O Corvo” de Pessoa é uma maravilha que, por contraste, ganha mais brilho ao lado da versão esquisita de outro monstro das letras, Machado de Assis, cuja tradução ritmicamen­te traidora —o que, no caso desse poema hipnótico, caracteriz­a pecado mortal— é demolida com tato, mas sem dó.

Não é, contudo, ao atacar a pouco prestigios­a tradução de Machado que Britto deixa uma contribuiç­ão fundamenta­l. Seus ensaios crescem ao serem lidos no contexto dos debates corvológic­os como refutação à defesa enfática —e curiosamen­te influente— que, no livro “O Corvo e Suas Traduções” (Lacerda), Ivo Barroso fez de uma tradução interessan­te, mas menos rigorosa que a de Pessoa no metro e na rima: a do jornalista mineiro Milton Amado.

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