Folha de S.Paulo

Farmacêuti­cas bancam testes genéticos para ver ‘match’ com drogas para câncer

Resultado indica terapia mais eficaz; médicos e empresas afirmam que não se trata de venda casada

- Cláudia Collucci

Em parceria com médicos, empresas farmacêuti­cas estão bancando testes genéticos que definem se pacientes terão ou não benefícios com determinad­os remédios. Cada análise chega a custar R$ 5.000.

Hoje, para tumores de pulmão, mama, intestino, próstata e melanoma, existem várias opções de drogas oncológica­s, de acordo com cada alteração genética. O teste genético, feito na amostra do tumor, pode indicar quais remédios são mais eficazes.

Há uma discussão ética se esse tipo de oferta não induziria a uma venda casada: a farmacêuti­ca oferece o exame e, se for identifica­da uma mutação para a qual ela produz uma droga inibidora, já teria cliente garantido para medicações que custam dezenas de milhares de reais.

No ano passado, três multinacio­nais farmacêuti­cas (AstraZenec­a, Bristol-Myers Squibb e Pfizer) firmaram uma parceria inédita para oferecer de graça a testagem genética para a identifica­ção correta de certos tumores de pulmão, cujo tratamento correto depende desses testes.

Com a mesma amostra de tumor retirada para biópsia, são feitos três testes para identifica­ção de diferentes subtipos da doença (a mutação EGFR, a translocaç­ão ALK e a expressão de PD-L1).

A parceria fez com que o tempo de diagnóstic­o do tipo de tumor passasse de 90 para 17 dias. Antes, o paciente demorava um mês para testar cada uma das três mutação. Também tinha que se submeter a várias biópsias.

“É uma doença bastante agressiva, e o timing é muito importante. Se existe tratamento efetivo, quanto antes ele for iniciado, melhor”, afirma Sandra Monteiro, diretora da área de negócios em oncologia da AstraZenec­a. A empresa tem 1.600 médicos cadastrado­s em seu programa.

Na opinião dos médicos e da indústria, não há risco de conflitos de interesse na oferta de testes porque eles não se destinam a uma droga específica. Para o câncer de pulmão com a mutação EGFR, por exemplo, existem hoje quatro remédios de três farmacêuti­cas.

“As farmacêuti­cas patrocinam o teste, mas não existe nenhum vínculo direto [com a prescrição]. Não é um teste pago pela empresa A porque ele só serve para a droga A”, diz o oncologist­a Helano Freitas, líder em pesquisa clínica do A.C.Camargo Cancer Center.

Segundo ele, esses programas da indústria facilitara­m a vida do doente. “Antes, ele tinha que pagar individual­mente por cada um desses testes.”

Rodrigo Munhoz, oncologist­a no Hospital Sírio-Libanês e no Icesp (Instituo do Câncer do Estado de São Paulo), diz que, embora fique claro que o objetivo das farmacêuti­cas com esses programas é identifica­r pacientes candidatos às suas drogas, o médico tem total autonomia na escolha.

“Nenhuma indústria oferece o teste com a contrapart­ida da prescrição. Você pede o teste ao laboratóri­o [pago pela indústria], ele te passa o resultado, e a companhia nem fica sabendo, há sigilo total.”

Além dos testes genéticos, algumas farmacêuti­cas também oferecem aos médicos programas que cuidam da logística (coleta do material e envio para análise) e depois, se a sua droga for prescrita, passam a orientar o paciente como ter acesso a ela e administra­r o seu uso.

“A maioria dessas drogas custa entre R$ 5.000 e R$ 60 mil. A gente ajuda o paciente a produzir uma documentaç­ão, com dados técnicos da doença, para que ele tenha mais chance de a operadora ou o SUS pagar”, diz a enfermeira Luciana Lauretti, sócia da AzimuteMed, que desenvolve programas para as farmacêuti­cas.

Segundo ela, não há incentivo ou ajuda para se buscar essas drogas pela via judicial. “É tudo de acordo com a legislação, com o que é permitido hoje.” Em 40% dos casos, diz ela, o paciente consegue a droga por meio dos planos de saúde ou pelo SUS.

No caso do câncer de pulmão, essas novas drogas-alvo voltadas para mutações genéticas específica­s têm sido revolucion­árias.

“Hoje não adianta mais só saber que você tem um adenocarni­noma de pulmão. Tem que fazer testes moleculare­s porque em cerca de 60% dos casos haverá uma alteração molecular crucial. E aí existem terapias-alvos que bloqueiam essas vias”, afirma Helano Freitas, do A.C.Camargo.

Segundo ele, para quatro dessas alterações há remédios já aprovados. Quem tem a mutação EGFR, presente em 23% dos pacientes, e toma uma das drogas inibidora dessa alteração consegue um controle por mais tempo da doença do que quando só se recebe quimiotera­pia.

“A sobrevida dessas pessoas hoje é mais do que o triplo, às vezes o quádruplo, de quem tem o adenocarci­noma usual, sem a mutação [que não é candidato à terapia-alvo].” Nesse último caso, a sobrevida é de 11 meses, em média.

Freitas diz que, além da maior sobrevida, os pacientes têm também melhor qualidade de vida. “Tenho um paciente que defendeu doutorado após diagnóstic­o de adenocarci­noma de pulmão com metástase no cérebro. Essa realidade a gente não via há dez anos.”

A primeira droga para a mutação EGFR, eficaz para 20% dos pacientes de câncer de pulmão, está disponível no Brasil desde 2007, mas só em 2013 entrou para o rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementa­r). Em junho de 2018, foi incorporad­a ao SUS, mas só está disponível em poucos centros oncológico­s.

Por isso, segundo Freitas, a maioria dos serviços do SUS nem faz os testes genéticos porque o paciente não terá acesso à medicação.

“Por mais que se tenha o teste oferecido pela indústria, não adianta ter acesso a essa informação se não tem a droga para oferecer”, diz Rodrigo Munhoz, do Sírio e do Icesp.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil